O Tanoeiro da Ribeira

terça-feira, julho 24, 2007

"OPERAÇÃO DE BARRIGA ABERTA"



Ontem, à noite, ouvi foguetes. O som vinha lá de longe. Dos lados da serra de Valongo. E surpreendi-me: amanhã, é a festa de Santa Justa!…
Hoje dia, 23 de Julho, o Dr. José Pedro Azevedo, que me operou na Ordem da Trindade, no dia 11 de Julho, retirou-me os pontos de uma operação motivada por uma hérnia inguinal e várias hérnias epigástricas. Estas resultaram de uma operação que fiz já lá vão uns 61 anos...
As coincidências levaram-me a recordar um dos momentos mais trágicos da minha vida. Eu conto.

O ACIDENTE
O ano de1946 corria tranquilo na felicidade despreocupada dos meus sete anos. Era tempo de festa. Fizera a minha primeira comunhão em Maio e preparava-me para ir para a escola em Outubro.
No dia 17 de Julho, era quarta-feira, meu pai e meus irmãos, auxiliados por vários vizinhos, andavam a arrancar batatas no campo de Godas. Em casa, apenas ficara minha mãe para fazer o “jantar” (que agora se diz almoço) e eu para a ajudar.
Como não tínhamos água canalizada, minha mãe, antes de acender a fogueira, foi buscá-la com o caneco, à “Mina do Moreira”. Ordenou-me que, entretanto, fosse ao quinteiro procurar queirós (urzes) secas para a ajudar a atear a fogueira quando regressasse. Acontece que a cozinha de minha casa fica no primeiro piso e o quinteiro é no rés-do-chão. Enquanto descia a escadaria que, da varanda, dá para o quinteiro, já ia a tentar ver, no meio do mato, onde estavam as queirós mais secas. Como a escadaria não tinha corrimão, aproximei-me, sem saber, da borda exterior das escadas, o meu pé direito falhou-me e eu, com o lanço que ia, fui bater com o lado esquerdo no bloco de granito onde estava fixado um varão de ferro que suportava o telhado do alpendre e que eu gostava de trepar. Senti umas dores horríveis.
Porque estava sozinho em casa, arrastei-me “de gatas” até ao exterior das portas “fronhas”, esperando que alguém passasse ou minha mãe chegasse. Quando chegou, eu, estendido no chão, só me lembro de lhe dizer” olhe minha mãe que eu vou morrer.” Ficou muito aflita e, depois de pousar o caneco em casa, pegou em mim ao colo e levou-me para a sua cama que ficava no quarto junto da cozinha. Sentia umas picadelas muito fortes no lado esquerdo da barriga, por debaixo das costelas.
Coitada de minha mãe… Tinha que fazer o jantar porque o pessoal das batatas estava para vir. Com que sofrimento e angústia… Quando chegaram, contou ao meu pai o que se tinha passado. -“ Isso foi mais uma das brincadeiras. Não pára quieto. Parece que tem “bicho carpinteiro”. Pois é, estava subir o varão e caiu. Isso passa. São coisas de crianças.” (Eu era a criança da casa porque meus irmãos eram mais velhos que eu dez e doze anos, respectivamente, o António e o meu Padrinho José Joaquim). Não ligaram grande importância ao cachopo… E lá continuei na cama, sem posição para estar: se me deitavam, doía-me, se me sentavam, doía-me. Sempre que me mudavam de posição as picadelas redobravam.

NO HOSPITAL DA ORDEM DO CARMO, NO PORTO
Na manhã de quinta, como as dores não passavam, meu pai chamou o médico amigo da família, o Dr. João Vale. Logo que me viu com um grande inchaço que se avolumava na minha virilha esquerda, disse: - “ Tem que ser imediatamente levado para o hospital”. – Para Valongo, pergunta minha mãe, aflita. – Não, para o Porto e já. Chamaram a ambulância dos bombeiros de Valongo e eu, acompanhado por meu pai e pela tia Isaura, que, com o marido, o senhor Moisés, vivia numa parte da minha casa, fui transportado para o hospital da Ordem do Carmo. Ainda tenho a imagem das pessoas à volta da ambulância quando eu era transportado para o interior do hospital: - foi um desastre
Entretanto, também chegara o Dr. Vale e o operador, Professor Fernando Magano, que era professor na Faculdade de Medicina do Porto que, à época, funcionava junto do Hospital de Santo António, no edifício que agora pertence ao ICBAS.
A minha casa anoitecera. Minha mãe fechou todas as portadas das janelas que se mantiveram cerradas até eu ser transferido para o hospital de Valongo. Deixou de acender a lareira… Como minha casa era um pouco o centro da aldeia (era lá que as pessoas iam ao leite, todos os dias), o meu lugar também entrou em oração. Estávamos em tempo da festa de Santa Justa (o dia litúrgico é em 19 de Julho, mas a festa faz-se sempre na segunda-feira seguinte) cuja capelinha branquejava lá ao longe no alto da serra de Valongo. As minhas vizinhas, e foram muitas, fizeram promessas à Santa Justa, pedindo que me salvasse. Minha mãe não ia muito em promessas aos santos. Rezava muito ao Santíssimo Sacramento e ao Sagrado Coração de Jesus de quem era zeladora. (Ainda me lembro de ir pedir a esmola aos vizinhos que eram Associados do Coração de Jesus…)
O Professor ordenou aos estagiários que o acompanhavam que fizessem o diagnóstico. Como estes tardavam e o tempo urgia, logo afirmou:” Trata--se de uma ruptura no baço e o sangue está a concentrar-se aqui na virilha e a espalhar-se pelo corpo. Tem que ser operado imediatamente ou, se não, virá uma infecção que o mata.” O Dr. Vale veio falar com meu pai: “Senhor Moreira Dias, o João precisa de ser operado. Se não for operado, não viverá mais de doze horas; se for, poderá morrer mais cedo ou então salvar-se. Tem que decidir. Já.” Meu pai, respondeu: - “Se há uma esperança, opere-se” (Horas duras as vividas por meu pai… e eu rezo uma oração por ele e pela tia Isaura e pelo Dr. Vale e pelo Professor Fernando Magano - já todos partiram…).
Por coincidência, estava na Ordem do Carmo um bispo Missionário que, quando soube que eu já tinha feito a primeira comunhão, veio confessar-me e dar-me a Comunhão e a Extrema-Unção (É por isso que costumo dizer que sou dos poucos que já receberam todos os Sacramentos… Se isso fosse sinónimo de santidade…). Soube depois que ele não respeitou o segredo da confissão e disse ao meu pai que o pecado que eu confessara foi o de ter mandado à merda (sic) as vacas. (Só um parêntese: isto significa que eu já ia, sozinho, com o gado para o monte porque era esta a única ocasião em que contactava com as vacas – hoje seria exploração infantil…)
Dada a urgência, nem análises foram feitas. Só me lembro da aflição que senti quando me deram a cheirar um pedaço de algodão embebido em clorofórmio para me anestesiarem. Ainda hoje este cheiro me acompanha.
Quando o bisturi me rasgou a pele da barriga, o sangue salpicou as batas dos médicos que me operavam. Foi uma cirurgia de alto risco que o Professor Fernando Magano só realizou porque eu era muito novo. O que me tinha acontecido? Ao bater no granito, as costelas flutuantes curvaram, sem partirem, e picaram o baço entre três locais. Por isso, o sangue espalhara-se pelo corpo. O baço não foi retirado, foi cozido. A barriga foi toda aberta: a costura que me foi feita, vai da boca do estômago até ao fundo da barriga: “operação de barriga aberta”.
Para além de arriscada, foi uma operação dispendiosa: naquele tempo, meu pai pagou dezanove contos na Ordem do Carmo. Era muito dinheiro. Basta lembrar que, por uns dois contos, já se comprava uma junta de bois… Eu, apesar de criança, apercebi-me claramente que, se meu pai não tivesse dinheiro, eu teria morrido. Por isso, ainda hoje me envergonho da figura que fiz no dia de minha comunhão solene em cujo almoço participaram muitos amigos da família, entre os quais o Dr. Vale. Quando meu pai, mostrando-se agradecido, dizia em voz alta: - “Se hoje estamos em festa, devemos isso aqui ao senhor Dr. Vale…” Eu acrescentei: -“E ao dinheiro do meu pai…” Fez-se silêncio… Meu pai engoliu em seco… Menino espertinho… Criança não esconde o que pensa…
Depois de operado, fiquei entre a vida e a morte durante alguns dias. Meu pai nunca me deixou. Acompanhou-me sempre. Grande companheiro. Obrigado, pai. Minha mãe, coitada, não podia abandonar a casa. Sofria no silêncio como sempre soube sofrer…
Desse período, recordo aquilo que mais me atormentou: o algaliar-me (era muito doloroso) e a sede terrível. A febre queimava. Só podia beber uma colherzinha de água-das-pedras, de longe a longe (E a insensibilidade dos médicos e enfermeiros… Quando vinham ver-me, sempre lavavam as mãos no lavatório que havia no quarto. Eu, cheio de sede, ouvia a água a correr... Uma noite, enquanto meu pai dormia, procurei levantar-me para ir beber ao lavatório… Acordou nesse preciso momento, chamou o enfermeiro…e deitaram-me. Deus estava por nosso lado.)

MILAGRE DE SANTA JUSTA
O febre começou a diminuir na noite de domingo para segunda-feira: exactamente na passagem da Festa de Santa Rufina para a festa de Santa Justa (as duas são veneradas na mesma capela: Sta Rufina é festejada no Domingo; Santa Justa, na Segunda.). A partir dessa noite, as melhoras foram constantes. Foi um milagre de Santa Justa. Nos anos seguintes, logo que pude, subi, várias vezes, amortalhado até à sua capela e acompanhei a pé, segurando a mão de minhas vizinhas que, de joelhos, davam voltas à capela, cumprindo as promessas que fizeram para me salvar. Já todas estão na “terra da verdade”. Que Deus vos recompense.

NO HOSPITAL DE VALONGO
Passados uns tempos, fui transferido para o hospital de Valongo onde fiquei ao cuidado do Dr. Vale. Por infelicidade, os pontos da parte superior da barriga, rebentaram. O Dr. Vale veio ter comigo e disse-me: - João, és homem ou não és homem?...- Sou sim senhor. E coseu-me com “corda de viola” a parte que se tinha rompido. E, cerrando os dentes, aguentei… porque era homem…- Qu’a dores, meu Deus!... Foi precisamente nesse local que foram descobertas as várias hérnias a que fui operado. A costura que agora me foi feita, com cerca de trinta pontos, acompanhou toda a extensão da anterior. Vamos ver se fico mais arranjadinho… A Ana Rita, filha do meu amigo Dr. Luís, um dia, ao ver-me na praia, ficou muito admirada e disse: o João tem dois bigos… Vamos ver se fico apenas com um bigo…
Depois de vir para casa, estive vários meses de cama e andei enfaixado durante um ano. Valeram-me o Luís Gaio, o Nando da Lina, o Chico Queirós e a Palmira Leoa que me vinham fazer companhia… Não pude ir para a escola nesse Outubro, mas apenas em Outubro do ano seguinte, já com oito anos. Atrasei um ano.
Toda a gente teve consciência da gravidade do meu desastre mas houve uma fama de que nunca me livrei: o acidente devera-se ao facto de eu ter caído quando estava a subir ao varão… (É verdade que eu, na minha traquinice, gostava muito de trepar pelo varão fora... ) . Esta foi a versão que fora posta a correr pelos adultos que não viram nada, porque eu estava sozinho em casa. Eu bem reclamava: - que não senhor, que foi quando ia à procura das queirós… Mas… o que ficou… foi o que os adultos disseram: criança, era criança… Lembro-me do Kalimero…Injustiças!...

SEQUELAS
Como sequelas dessa operação, recordo, em primeiro lugar, as minhas limitações nas brincadeiras de criança que deveriam evitar tudo o que representasse esforço físico ou pudesse ocasionar choques violentos Por isso, especializei-me no jogo do botão, na roda, na corrida, na barra.
Durante, os meus primeiros anos do seminário ainda sofri muito. O clorofórmio deixou-me com muitas dores de cabeça. Em certos dias, as dores eram insuportáveis. Eu ficava na cama, mas logo vinha o enfermeiro “tirar-me a temperatura” e, como não tinha febre, era obrigado a levantar-me, a ir para as aulas e, ainda por cima, ouvia: - Estes preguiçosos… Depois tudo passou.

Esta foi uma recordação que me fez lembrar os que me amavam e que muito sofreram. E um sentimento de pertença e gratidão me encheu o espírito. Já quase todos partiram para a “Casa do Pai”… As saudades embaciaram-me os olhos…

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