O Tanoeiro da Ribeira

sábado, outubro 06, 2007

PAI


Ontem, participei no funeral do pai do Pe. Bacelar. O Pe. Bacelar, responsável pela Pastoral Universitária e, actualmente, também pároco das Antas no Porto, é um grande amigo dos teus netos: foi ele quem presidiu à celebração do casamento do João e da Eli no Mosteiro da Serra do Pilar (que beleza!...) e deu muito apoio ao Zé Carlos (e a nós) nas horas mais difíceis da sua doença. É um amigo que muito admiramos como homem e como sacerdote.
Quando cheguei à igreja das Antas, depois de dar as minhas aulas no Colégio, já o Pe. Bacelar estava a fazer a homilia da Missa de Corpo Presente por alma de seu pai. E logo senti, na aparente serenidade das suas palavras, as emoções mais profundas que enchiam de lágrimas o seu coração e humedeciam a sua voz. A penumbra da fé conforta mas não inibe os nossos sentimentos. E lembrei que, já lá vão mais de 37 anos, também presidi a idêntica eucaristia em tua honra e por tua alma. E a minha memória trouxe-te até mim e meus olhos se humedeceram de saudade e em meu coração nasceu um cântico de louvor ao Senhor por te ter como pai... E porque me lembrei que, no cemitério, ao rezar a última oração que te “entregava à terra”, as lágrimas, refreadas durante todas as exéquias, explodiram em meus olhos e me embargaram a voz (o que valeu é que eu, prevendo o que de facto aconteceu, tinha pedido ao meu colega Brito para rezar comigo a última oração e rezar até ao fim mesmo que eu me calasse… e foi o que ele fez.), decidi acompanhar o funeral até ao seu último momento. No final da Missa, soube que o pai do Pe. Bacelar iria ser enterrado em Paredes de Coura, sua terra natal, havendo uma missa na freguesia de Formariz, terra da sua residência, às 4 horas da tarde. A essa hora eu e a Nitas lá estávamos. Mais uma vez, o Pe. Bacelar fez uma homilia que nos encantou onde a força da fé, expressa nas palavras, não conseguia esconder o turbilhão de sentimentos que lhe assoberbavam o coração e, timidamente, afloravam nuns olhos rasos de água. Porém, foi no cemitério da Vila, no momento das orações de despedida, que a sua voz se turvou e as lágrimas rebentaram nos seus olhos. E estive lá e, quando ele me agradecia a presença, expliquei-lhe que quisera estar com ele até ao fim porque também eu presidira ao funeral de meu pai e, ainda hoje, passados já 37 anos, não consigo suster as lágrimas de saudade.

E logo ali disse à Nitas, que tu não tiveste a dita de conhecer mas que muito te ama, que hoje iria falar contigo…( E já agora te digo que tu também não conheceste os nossos filhos mas que eles, desde pequeninos, se habituaram a admirar-te e amar-te: lembras-te daquela fotografia que tiraste com a mãe e ofereceste aos filhos? Pois é verdade, ela está afixada na parede mais visível da nossa casa - estais sempre presentes.) Sei que tu permaneces na memória e no coração dos que te amam e acredito que tu vives e já tens a companhia da Mãe e do António. O Deus em que creio não é o Deus dos Mortos mas dos Vivos… Como diz o povo, estás na “terra da verdade”. Quero que saibas que esta conversa não me faz sofrer, embora meus olhos estejam humedecidos. Pelo contrário, estou feliz por te ter tido como pai. É com paz interior, que se sente mas não se explica, que eu quero recordar algumas das conversas que tivemos.

Para começar, logo me vem à mente o que tu me contavas do teu avô, tanoeiro de profissão, que deu nome à nossa alcunha familiar: “os tanoeiros”. Trabalhava numa tanoaria no Porto e todos os sábados regressava sua casa. Eram cerca de 15 quilómetros percorridos a pé. E no domingo à noite lá voltava para o Porto, muitas vezes carregado com um caneco que conseguira fazer durante o fim-de-semana (era a maneira que encontrava para ganhar mais uns vinténs para além do magro salário que o patrão lhe pagava). Falavas-me também, da sua amabilidade. Quando alguém demorava muito a pagar-lhe, passava por sua casa, e em vez de reclamar o pagamento devido, apenas perguntava: -“o caneco veda bem?...” E as pessoas iam pagando. É este homem, de rija têmpera, trabalhador e honrado que eu quis homenagear ao escolher o título do meu blog. Só tenho pena que esse apelido não faça parte do meu nome oficial.

E falavas-me do teu pai que, para além de lavrador, ganhou dinheiro a trabalhar na construção da linha de caminho de ferro do Douro. E acentuavas a dureza desse trabalho, num misto de pena e de admiração pelo teu pai. E contavas que ele tocava muito bem guitarra e era tido na terra por um homem sábio que falava de coisas que espantava quem o ouvia. Até me ofereceste o livro onde ele ia buscar muito do seu saber: “ FYSIOGNOMIA E VARIOS SEGREDOS DA NATUREZA- LISBOA Anno MDCCLXXIX Com licença da Real Meza Censória” ( Para que saibas, digo-te que já o usei nas minhas aulas de Filosofia, que o guardo com muito carinho e que espero deixá-lo aos meus filhos)

Da tua juventude, recordo, em primeiro lugar, aquela peripécia das abelhas, lembras-te? Contavas tu que, certo dia, zangado com um tufo de cabelo que no cocuruto da cabeça se mantinha hirto e não acamava, resolveste ir a uma colmeia tirar o mel e empastá-lo na cabeça. E conseguiste domar esse naco de cabelo rebelde e ficaste com um cabelo luzidio que a todos espantava. O pior foram as moscas, abelhas e vespas que te não largavam e rodopiavam assustadoras à volta da tua cabeça o que terá levado a tua mãe a dizer: - Que é que tu tens, filho, que as abelhas não te largam?... E tu lá inventaste uma mentira para tua mãe não ralhar. Sei que te serviu de emenda e nunca mais gastaste tão precioso néctar com uma finalidade que não condizia com a sua natureza. E o tufo de cabelo lá continuou rebelde a enfrentar a tua paciência… Ainda nas fotografias da minha Missa Nova, mesmo em dia de festa, lá aparece o dito cujo…

Relembro ainda o modo como a Mãe falava do teu garbo e da tua postura quando eras solteiro. Como tu eras imponente quando passavas à sua porta cavalgando um belíssimo cavalo que era o teu orgulho e a admiração da vizinhança e tu, com aquele ar maroto, comentavas: lá isso era, o pior era que eu quase não chegava aos estribos porque tinha as pernas curtas…
A mãe também se sentia vaidosa quando falava o quanto gostava de te ouvir tocar clarinete na igreja num grupo musical a que pertencias: lembro-me de ter ido à capela da Senhora do Salto para ver uma fotografia do vosso grupo quando lá foste tocar numa festa. E tu contaste-me que, contrariando a vontade da tua família, aprendeste a tocar clarinete, à noite, numa escola em Valongo. E sofreste (e eu sofri…) com essa tua ousadia. Em casa, consideravam-te malandro e, por, isso, teus pais só não te deserdaram por que não puderam mas, mesmo assim, doaram à tua irmã a “sua quota disponível” que, naquela época, era de 50% de todos os bens. Até porque tu casaste com “uma mulher malandra, gastadora, que não sabia fazer nada, só sabia andar em bruxedos”…Que Deus lhes (tu sabes de quem estou a falar…) perdoe, porque a mãe já lhes perdoou… Mas sofreu muito. Grande coração!...É uma santa a minha mãe, por isso, eu lhe rezo: nas horas mais difíceis da doença do meu filho, era a ela que recorria: - Mãe, pede a Deus pelo teu neto. Tu que tanta vezes lhes disseste” que Deus te fade para boa sorte” não te esqueças dos teus netos e lembra-te que agora já tens mais uma neta. Continua a dizer “que Deus vos abençoe”.

Como bem cantavas o fado e tocavas guitarra. E eu não sei tocar qualquer instrumento. Que pena sinto!... Lembro-me de quando tu falavas do fado que compuseste quando foste para a vida militar e que, na véspera da partida, cantaste à janela de tua casa fazendo chorar toda a vizinhança… E quando eu te perguntei quanto tempo andaste na tropa tu, sempre com aquele sorriso maroto, respondias, creio eu, -“três semanas”…

Como eu te invejava quando contavas que, quando ias para a agra de além-do-rio, não ias à volta pela ponte que ficava longe; ias a direito, na margem do rio, tiravas a roupa, punha-la sobre o peito e atravessavas para o outro lado a nadar de costas. Grande herói!... E eu que para dar umas braçadas faço um esforço dos diabos!...

Quero terminar esta nossa conversa de hoje, recordando como foram difíceis os vossos primeiros anos de casamento. Contavas tu, e a mãe confirmava, que, quando casaste, vieste viver para a casa da Ribeira que pertencia à família da mãe e tinha andado sempre entregue a caseiros. Tiveste logo de entrar com dez contos para começares a pagar as “tornas” aos teus cunhados. E ficaste sem dinheiro nenhum. Um dia, um negociante de gado trouxe-te uma vaca porque soube que tu precisavas de uma vaca para criar. Viste e gostaste. Mas… dinheiro para pagar não havia. Não é que o negociante não confiasse em ti, mas, na verdade, ele precisava do dinheiro para pagar ao dono da vaca. Estavas tu nessa conversa quando passou um teu amigo de infância, o Manuel Joaquim da Corredoura, que te deu um abraço e perguntou o que se passava. E tu, com um sorriso amarelo, lhe disseste que bem precisavas daquela vaca mas não tinhas dinheiro para pagar e o negociante não podia esperar. E ele perguntou: quantas vacas queres? – É só esta, respondeste tu. Então, ele virou-se para o negociante e disse: - a vaca fica e o senhor passe por minha casa que leva já o dinheiro. Como tu ficaste feliz. E essa vaca prolongou-se por muitos e muitos anos através das crias que, sucessivamente, foste criando. Como te mostravas reconhecido com esse amigo. Sempre o recordavas.

Qualquer dia voltarei à conversa contigo. No coração, tu estás sempre connosco.