Morte – último dos tabus
Tempos atrás, um companheiro de longa data falou-me dos comentários que, aquando do seu casamento, os amigos teceram à sua nova casa. Um pedopsiquiatra, na sala, que de jantar tinha o nome mas não mobília, disse-lhe: “parabéns por estes espaços vazios. Estou cansado de tratar mães angustiadas com os filhos que se magoam nos móveis e lhes partem os bibelôs. Os adultos não pensam nas crianças quando atafulham as casas”. O outro foi dum tio que vivia na aldeia. Enquanto percorriam a casa, começou a medir o corredor e, no fim, disse: “muito bem, quando alguém morrer não precisais de desarrumar nenhum quarto, tendes aqui um bom espaço para pôr o caixão”. Era assim, antigamente. Em casa se nascia e vivia. E também se morria e partia para a última morada. Desde cedo, as crianças habituavam-se a conviver com a vida e a morte. Desconheciam donde vinham os meninos, mas sabiam que o bebé era dom sagrado a ser batizado. E também sabiam que, quando alguém morria, ia para o Céu para junto de Deus. O sentimento religioso bebia-se com o leite materno. Hoje, a sociedade é bem diferente. Em casa não se nasce, quase não se vive e raramente se morre. Explica-se às crianças os mecanismos biológicos da reprodução, mas nada se diz sobre o mistério da vida e do amor. Porque a morte denuncia a fragilidade humana e o “pós-morte” não tem explicação científica, procura-se ocultá-la às crianças. Sem uma referência à transcendência, como falar-lhes do avô que se fez cinza ou foi enterrado no cemitério? Tenta-se varrer a morte para debaixo do tapete. Faz-se dela o último dos tabus.
Estas reflexões surgiram-me na sexta-feira santa quando a “morte de cruz” é celebrada como caminho de Vida. E fizeram-me lembrar a afirmação do Cardeal Ravasi, a propósito do “Átrio dos gentios”: “há hoje um ateísmo onde domina a indiferença: é igual que Deus exista ou não, é marginal que haja ou não uma moral transcendente”. Ao expulsar Deus da família e da sociedade, a Europa fez-se alfobre deste ateísmo prático, fechado ao diálogo e sem qualquer inquietação metafísica; ao procurar silenciar a voz da morte que fala do além, pretendeu aniquilar o último reduto da sacralidade. Recordei, ainda, aquela criança que, ao chegar da catequese, disse: “a minha catequista é mentirosa, disse que Cristo morreu e ressuscitou. Ó mãe, tu já viste alguém voltar a viver depois de estar morto?” Como catequisar crianças que, embora batizadas, não têm o sentido do sagrado e a quem os símbolos cristãos pouco dizem? Ensinar-lhes a doutrina não basta, é preciso iniciá-las numa vivência que lhes é estranha, sem a qual, a catequese é água que não penetra na terra e cedo se evapora. É este o mundo em que celebramos a Páscoa. Também para ele a Páscoa é apelo à mudança e convite à esperança.
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