O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, dezembro 18, 2024

PRENDA DE NATAL

No entardecer, o Natal veste-se com cores de nostalgia…E a minha memória, saudosa, conduz-me aos tempos de criança. Não havia árvore de Natal e, muito menos, o ‘pai natal’, mas um lindo presépio na igreja da minha aldeia, com o Menino Jesus, deitado nas palhinhas; a vaca e o burrinho a aquecê-Lo; Nossa Senhora, de joelhos, a olhar o filho, e S. José, de pé com uma vara florida, a guardar o Menino. Em frente da choupana, pastorinhos com ovelhas às costas e baldes de leite ao ombro; mulheres com regueifas enfiadas no braço. (Não podemos esquecer que Valongo sempre foi a terra da regueifa). Mais atrás, os três Reis Magos, Baltazar, Melchior, Gaspar, e seus camelos com ofertas de ouro, incenso e mirra. Espalhadas pelos montes cobertos de musgo, muitas ovelhas, guardadas por pastores vestidos com peles de carneiro e acompanhados por enormes cães de guarda. Várias mulheres, umas com açafates à cabeça, outras com bilhas debaixo do braço, desciam a caminho da cabana com ofertas para o Menino. Pelas quebradas dos montes, viam-se lavadeiras no rio (Jordão), homens a pescar, um moleiro a caminho do moinho com o jumento carregado de taleigas, e crianças a brincar com rodas e ganchetas. Num poço, mulheres, com um balde, tiravam água para os seus canecos; homens de capote e cajado na mão guardavam os bois que pastavam nas encostas menos inclinadas; E não podia faltar a banda de música, bem aprumada, numa terra que se orgulha da sua muito querida ‘Banda Musical de S. Martinho de Campo’, fundada em 1929, que, todos os anos, abrilhantava a ‘Festa do Menino’ no dia 1 de janeiro, então, a maior festa da freguesia. Ao fundo, erguia-se, terrível, Jerusalém, rodeada de muralhas e repleta de palácios onde vivia o Herodes ‘mau’ que queria matar o Menino e mandou degolar os ‘Santos Inocentes’. Por cima de tudo, uma linda e grande estrela. E, no centro da igreja, o enorme candelabro de cristal que, lá do alto, aspergia luz sobre todos nós e, na ‘Missa do Galo’, refulgia com maior brilho. Como me encantava!... Não estávamos à espera de receber. Antes, como os pastorinhos e os Reis Magos, queríamos levar prendas ao Menino Jesus. Para isso, os pais davam-nos uma prendinha e lá íamos nós levá-la ao presépio, no dia de Natal. Com que entusiasmo o fazíamos!... E o Menino parecia sorrir-nos a agradecer!...E com que sobressalto as vimos leiloadas na ‘Festa do Menino’!... O nosso prazer não estava no receber, mas no dar. Era o Menino que nascia, era Ele que merecia prendas. E não nós… Aqui chegados, amigo, pergunto: - Que vamos dar ao Menino, neste Natal? Deixo-vos com a estória “Os lençóis da vizinha”. “Um casal mudou-se para um novo bairro. Na manhã do dia seguinte, enquanto bebiam café, a mulher olhou para a janela e viu a vizinha a estender roupas. Imediatamente comentou com o marido: - Que porca a nova vizinha! Como é que tem coragem de pendurar no estendal as roupas mal lavadas… Está tudo amarelo! Se eu tivesse intimidade com ela dizia-lhe se queria uma aula para lavar a roupa como deve ser!... - Sai da janela, mulher, indica o marido. Dias depois, novamente durante o pequeno almoço, a vizinha pendurava lençóis no estendal e a mulher comentou com o marido: - Olha lá a coitada… acho que não tem sabão em casa, nunca vi uma roupa branca naquela casa. E assim, cada dois ou três dias, a mulher repetia o mesmo discurso, enquanto a vizinha pendurava as roupas no estendal… Passado um tempo, a mulher ficou surpreendida ao ver uns lençóis muito brancos no estendal, empolgada foi dizer ao marido. - Será que outra vizinha lhe explicou?? Porque eu não fiz nada… O marido respondeu: - Na verdade eu hoje acordei mais cedo e… lavei os vidros da nossa janela! Moral da estória: Assim é a vida: aquilo que vemos quando olhamos para os outros depende de quão limpas estão as nossas janelas... Antes de criticar e procurar algo no outro para julgar, quem sabe não seja melhor perguntar se não estamos prontos para um novo olhar. Limpe a sua ‘janela’, abra a sua janela (Autor desconhecido).” Que melhor prenda para Aquele que, um dia, disse: “Porque vês o cisco que está no olho do teu irmão e não reparas na trave que está no teu olho? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então verás com clareza para tirar o cisco do olho do teu irmão. “ (Mt 7, 3) Um Santo Natal e feliz Ano Novo! (18/12/2024)

terça-feira, dezembro 10, 2024

A MENINA QUE PINTOU A VERDADE

Em agosto passado, andámos por castelos, catedrais e abadias de Inglaterra. Depois de Iorque, com ‘a maior catedral de estilo gótico do norte da Europa’ - o arcebispo é o segundo na hierarquia da Igreja Inglesa, logo após o ‘primaz’, de Cantuária - parámos em Durham, diocese desde o século X. A catedral começou a ser construída em 1093 e a UNESCO, em 1986, classificou-a ‘Património da Humanidade’ como “o maior e mais perfeito monumento do estilo normando em Inglaterra”. Iniciámos a visita pelo túmulo do Venerável Beda (673 -735), Pai da História Inglesa, que o Papa Leão XIII declarou Doutor da Igreja. Ao percorrer o interior da catedral, encantado com a beleza dos vitrais, surpreendi-me ao encontrar, no altar de Santa Margarida da Escócia, uma pintura – a única de arte contemporânea existente em toda a catedral - com a placa: ‘Margaret and David ’ by Paula Rego. E a admiração deu lugar à emoção… Questionei-me: - Quem é esta pintora portuguesa que mereceu tal distinção? Para responder, fui ler a biografia “19 - Paula Rego - A menina que pintou a verdade (1935-2022” do livro de Inês Pedrosa, Vinte Grandes Mulheres do Século XX , cuja leitura já aconselhei. (cf. VP, 30/10/2024) E encontrei a resposta: “O crítico escocês John McEwenm(…) escreveu: A arte de Paula revela às mulheres o que são, porque ela pinta «a comédia humana» do ponto de vista feminino. Ela reponde, diz a verdade – por vezes a verdade desagradável – na sua arte. Muitas escritoras e poetas femininas fizeram isto; mas talvez, até Paula aparecer, nenhuma pintora o tenha feito tão profundamente”. (pág. 221). - Que mulher está por trás da artista? Voltei à ‘biografia’ e encontrei: • Uma criança sofrida e com medos. - Na família - Bem pequenina, enquanto os pais estudavam em Inglaterra, ficou com “a tia materna, uma mulher ressentida e infeliz que a espartilhava em regras e desalento. (…) ‘Nunca consegui ultrapassar este medo. (…) Por isso a ‘fuga’ como contadora de histórias. Pinta-se para lutar contra a injustiça”. - No ensino primário - Com uma professora particular ‘que se vestia sempre de roxo, costumava bater-lhe e, incapaz de entender os desenhos obsessivamente ‘tortos’ de Paula, vaticinava: - ‘Nunca hás-de ser capaz de desenhar!,’ • Uma adolescente marcada pelos ‘mitos’. “O pai proibiu-a de tomar os sacramentos; mesmo assim, aos catorze anos, Paula fez a Primeira Comunhão, e o catolicismo teve um papel importante durante o seu crescimento. (…) A religião fornecia-lhe grandes doses do seu veneno favorito: o medo. Tinha pesadelos com diabos chamejantes e agradecia à santa culpa (…) a viagem ao fim da noite da alma que ilumina a sua pintura.” (…) “Pinto para dar uma face ao medo.” • Uma vida ‘magoada’ por sucessivos ‘fins de vida’ - A morte do avô paterno: “Chorei tanto, tanto… Foi o primeiro fim da minha vida.” - O ataque cardíaco de Vic, o seu marido (também pintor): “Esse foi o segundo fim da vida dela” . - “O terceiro apareceria logo a seguir (…) O pai descobriu que tinha um cancro e morreu e Vic adoeceu, com um terrível diagnóstico: esclerose múltipla” (…) Agarrou-se à pintura, como sempre”. Regressam a Portugal “onde Vic se encarregou da fábrica do pai de Paula, para tentarem sobreviver. Nenhum dos dois conseguia vender quadros nessa época. «Foram tempos horríveis que eu não quero sequer recordar. É o pior período da minha vida». Começou então a recorrer à psicanálise.” “Em 1975, a empresa herdada do pai foi expropriada pelos trabalhadores, no clima tumultuoso que se seguiu à revolução de 1974. Em 1976, o casal instalou-se em Londres, passando apenas as férias em Portugal”. (…) Em 1979, viu-se obrigada a vender a mítica casa da Ericeira, por absoluta necessidade de dinheiro. Só em 1981, depois de vinte e sete anos de trabalho, alcançou a sua primeira exposição individual em Londres.” Estes traços biográficos poderão ajudar a conhecer a mulher que “põe tudo nos seus quadros: o saber e a ignorância, o riso e as lágrimas, a alquimia valente da sua, tantas vezes magoada, verdade.” (pág. 231). Mas não explicam a genialidade da sua pintura.(11/12/2024)

quarta-feira, dezembro 04, 2024

PELA DIGNIFICAÇÃO DOS POVOS COLONIZADOS - (V) - CABO VERDE

Neste arquipélago atlântico, termino o meu périplo histórico pelos ‘bispos missionários reformadores que têm em comum uma ligação à Diocese do Porto’. • D. Faustino Moreira dos Santos - Chega-me do mais fundo da infância a memória deste bispo que nasceu (29/5/1885) no lugar de Moreira, em Gandra, Paredes. Da Congregação do Espírito Santo, como D. Moisés, foi bispo de Cabo-Verde de 1941 a 1955. “D. Faustino e aqueles que o acompanharam foram considerados os verdadeiros protagonistas do reerguer do Cabo Verde católico. Foi apóstolo e missionário-“ • P. Augusto Nogueira de Sousa - Conterrâneo de D. Faustino, partiu para Cabo Verde em 1943 e aí trabalhou até 1978, chegando a ser Administrador Apostólico. Privilegiou a formação de clero local e muito se preocupava com o ensino e a educação no arquipélago. A cordialidade e a cultura granjearam-lhe o respeito de todas as autoridades do Arquipélago. No período de transição da soberania portuguesa para o PAIGC, foi um interlocutor privilegiado no diálogo da Igreja com as novas autoridades. “Foram tempos difíceis, mas, se a Igreja hoje em Cabo Verde goza de um certo respeito e liberdade de acção, a ele muito o deve.” Quando ouço louvar o regime cabo-verdiano como um exemplo de democracia nos PALOPs, penso que será, ainda, um fruto das sementes de fraternidade lançadas pelo Pe. Augusto. • D. Paulino Évora - Conheci-o, era, então, seminarista espiritano, na casa paroquial de Campo/Valongo. onde o pároco, P. Joaquim, acolhia os seminaristas cabo-verdianos como ‘filhos’ do seu irmão Augusto. Ordenado presbítero em 1962, foi o primeiro bispo cabo-verdiano e o primeiro de Cabo Verde independente. Aquando da sua morte (16/6/2019), foi enaltecida a sua importância: . Para o País: O Governo decretou dois dias de luto nacional de homenagem ao “Pastor humilde, Homem de convicções fortes e grande defensor da Liberdade dos cabo-verdianos” (Nota do Governo); . Para a Igreja – “A Igreja, sob a sua orientação, conheceu grandes progressos em termos de organização, de aumento de padres e religiosos e leigos para a obra da Evangelização “(Expresso Ilhas. 16/6/2029); . Em síntese: “Grande lutador e impulsionador da democracia no arquipélago e figura marcante na renovação da Igreja e da fé em Cabo Verde” (RFI – Rádio França Internacional • Ao terminar esta série de onze artigos sobre “A Igreja e o 25 de Abril” - seis, na Metrópole, e cinco, nas Colónias - três notas finais se me impõem: 1. Fica claro que foram muitas as vozes da Igreja – e pagaram caro a sua ousadia - que, por exigência evangélica, tiveram a coragem de denunciar a opressão em favor da dignidade do Homem e dos Povos. A história e a sociedade não podem ignorar o seu impacto no desmoronar do primeiro pilar do tripé em que o ‘Estado Novo’ se apoiava: Deus- Pátria – Família. 2. E, no entanto, como diz a historiadora Rita Mendonça Leite, da Universidade Católica: “Permanece uma certa ideia da convivência que em determinadas alturas existiu entre boa parte da hierarquia católica e o regime. Se essa ideia permanece justifica-se que seja feito o pedido de perdão, em nome do esclarecimento do que foi o papel da Igreja Católica” (7Margens,30/1/2024). 3. Não foi sem razão que, logo após o ’25 de Abril’, testemunhei duas propostas de que faço memória… . Na ‘Assembleia dos Párocos da Cidade do Porto’, um grupo propôs que todos deveriam pôr o seu lugar nas mãos do Senhor Bispo. Se houvesse acordo, eles seriam os primeiros a fazê-lo. O que não foi aprovado. E se o fosse, soubemos depois, o senhor Bispo não aceitaria. . Num encontro com D. António Ferreira Gomes, na biblioteca do Seminário da Sé, um grupo de Padres apresentou uma moção que pedia a cada um dos bispos portugueses para, num assumir solidário de culpa, apresentar ao Santo Padre o pedido de renúncia. Foi discutida, mas não aprovada. E foi pena porque, mesmo que não fosse aceite, seria um gesto simbólico que credibilizava a hierarquia e honrava a Igreja. (4/12/2024)