A MENINA QUE PINTOU A VERDADE
Em agosto passado, andámos por castelos, catedrais e abadias de Inglaterra.
Depois de Iorque, com ‘a maior catedral de estilo gótico do norte da Europa’ - o arcebispo é o segundo na hierarquia da Igreja Inglesa, logo após o ‘primaz’, de Cantuária - parámos em Durham, diocese desde o século X.
A catedral começou a ser construída em 1093 e a UNESCO, em 1986, classificou-a ‘Património da Humanidade’ como “o maior e mais perfeito monumento do estilo normando em Inglaterra”.
Iniciámos a visita pelo túmulo do Venerável Beda (673 -735), Pai da História Inglesa, que o Papa Leão XIII declarou Doutor da Igreja.
Ao percorrer o interior da catedral, encantado com a beleza dos vitrais, surpreendi-me ao encontrar, no altar de Santa Margarida da Escócia, uma pintura – a única de arte contemporânea existente em toda a catedral - com a placa: ‘Margaret and David ’ by Paula Rego. E a admiração deu lugar à emoção…
Questionei-me: - Quem é esta pintora portuguesa que mereceu tal distinção?
Para responder, fui ler a biografia “19 - Paula Rego - A menina que pintou a verdade (1935-2022” do livro de Inês Pedrosa, Vinte Grandes Mulheres do Século XX , cuja leitura já aconselhei. (cf. VP, 30/10/2024)
E encontrei a resposta:
“O crítico escocês John McEwenm(…) escreveu: A arte de Paula revela às mulheres o que são, porque ela pinta «a comédia humana» do ponto de vista feminino. Ela reponde, diz a verdade – por vezes a verdade desagradável – na sua arte. Muitas escritoras e poetas femininas fizeram isto; mas talvez, até Paula aparecer, nenhuma pintora o tenha feito tão profundamente”. (pág. 221).
- Que mulher está por trás da artista?
Voltei à ‘biografia’ e encontrei:
• Uma criança sofrida e com medos.
- Na família - Bem pequenina, enquanto os pais estudavam em Inglaterra, ficou com “a tia materna, uma mulher ressentida e infeliz que a espartilhava em regras e desalento. (…) ‘Nunca consegui ultrapassar este medo. (…) Por isso a ‘fuga’ como contadora de histórias. Pinta-se para lutar contra a injustiça”.
- No ensino primário - Com uma professora particular ‘que se vestia sempre de roxo, costumava bater-lhe e, incapaz de entender os desenhos obsessivamente ‘tortos’ de Paula, vaticinava: - ‘Nunca hás-de ser capaz de desenhar!,’
• Uma adolescente marcada pelos ‘mitos’.
“O pai proibiu-a de tomar os sacramentos; mesmo assim, aos catorze anos, Paula fez a Primeira Comunhão, e o catolicismo teve um papel importante durante o seu crescimento. (…) A religião fornecia-lhe grandes doses do seu veneno favorito: o medo. Tinha pesadelos com diabos chamejantes e agradecia à santa culpa (…) a viagem ao fim da noite da alma que ilumina a sua pintura.” (…) “Pinto para dar uma face ao medo.”
• Uma vida ‘magoada’ por sucessivos ‘fins de vida’
- A morte do avô paterno: “Chorei tanto, tanto… Foi o primeiro fim da minha vida.”
- O ataque cardíaco de Vic, o seu marido (também pintor): “Esse foi o segundo fim da vida dela” .
- “O terceiro apareceria logo a seguir (…) O pai descobriu que tinha um cancro e morreu e Vic adoeceu, com um terrível diagnóstico: esclerose múltipla” (…) Agarrou-se à pintura, como sempre”.
Regressam a Portugal “onde Vic se encarregou da fábrica do pai de Paula, para tentarem sobreviver. Nenhum dos dois conseguia vender quadros nessa época. «Foram tempos horríveis que eu não quero sequer recordar. É o pior período da minha vida». Começou então a recorrer à psicanálise.”
“Em 1975, a empresa herdada do pai foi expropriada pelos trabalhadores, no clima tumultuoso que se seguiu à revolução de 1974.
Em 1976, o casal instalou-se em Londres, passando apenas as férias em Portugal”. (…)
Em 1979, viu-se obrigada a vender a mítica casa da Ericeira, por absoluta necessidade de dinheiro. Só em 1981, depois de vinte e sete anos de trabalho, alcançou a sua primeira exposição individual em Londres.”
Estes traços biográficos poderão ajudar a conhecer a mulher que “põe tudo nos seus quadros: o saber e a ignorância, o riso e as lágrimas, a alquimia valente da sua, tantas vezes magoada, verdade.” (pág. 231). Mas não explicam a genialidade da sua pintura.(11/12/2024)
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