TAMBÉM NÓS PRECISAMOS DE PÔR CERA NOS OUVIDOS...
“Neste caminho, que nos torna sensíveis ao mistério dos outros, a literatura faz-nos aprender a tocar os corações.” (Papa Francisco, 17 de julho de 2024)
Depois de partilhar convosco a leitura da Eneida, de Virgílio (1/2/2023) e da Ilíada, de Homero (22/11/2023) hoje, falo-vos da Odisseia, de Homero que, no dizer de Frederico Lourenço “é, a seguir à Bíblia, o livro que mais influência exerceu, ao longo dos tempos, no imaginário ocidental” (Odisseia, Introdução, pág. 13).
A mais conhecida das epopeias, com 24 cantos e mais de 12.000 versos, narra o regresso de Odisseu (Ulisses, para os romanos), ‘de Troia à sua Ítaca’.
“Aspetos vários desta história haveriam de entrar no imaginário da cultura ocidental: a teia de Penélope, as Sereias, o Ciclope antropófago, o amor sufocante de Calipso” (idem, pág. 19)
Mais que o lirismo dos “similes’ que pontuam toda a epopeia, a recordar-me a Ilíada, quero partilhar convosco o gosto de ler, em verso, episódios que bem conhecemos. Faço-o, na tradução de Frederico Lourenço, editada pela Quetzal Editora.
A teia de Penélope
“Jovens, meus pretendentes! Visto que morreu o divino Odisseu, /tende paciência (embora me cobiceis como esposa) até que termine /esta veste – pois não queria ter fiado a lã em vão (…) Daí por diante também de dia ela tecia no grande tear, /mas de noite desfazia a ‘trama’, depois que punha as tochas. /Assim durante três anos ocultou o engano e convenceu os Aqueus.” (Canto 2, 96)
O ardil de Calipso
“Calipso de belas tranças, terrível deusa. Ela acolheu-me; /com gentileza me estimou e alimentou. Prometeu-me /a imortalidade, para que eu vivesse sempre isento de velhice, / Mas nunca convenceu o coração dentro do peito. /Aí fiquei durante sete anos, e sempre humedecia/com lágrimas as vestes imortais que me dera Calipso. (Canto 7, 255)
O Ciclope antropófago
“Ó Ciclope, olha bebe este vinho! Já que devoras carne humana (…) Assim falei. Ele pegou na taça e bebeu. Maravilhosamente se alegrou, /ao beber o vinho doce. /E pediu logo para beber uma segunda vez (…) Três vezes lho dei a beber; três vezes esvaziou a tigela, /na sua estupidez. (…)
Falou e logo de seguida caiu para trás, e ali ficou deitado/ com o grosso pescoço de banda; e dominou o sono / que tudo conquista. (…) Tomaram o tronco de oliveira, aguçado na ponta/ e enterraram-no no olho do Ciclope, enquanto eu apoiava /contra o tronco o meu peso e fazia com que girasse” (Canto 9, 447)
O suplício de Tântalo
“Vi Tântalo a sofrer tormentos, /em pé num lago: a água chegava-lhe ao queixo. /Estava cheio de sede, mas não tinha maneira de beber: /cada vez que o ancião se baixava para beber, /a água desaparecia, sugada, e em volta dos pés /aparecia terra negra, pois um deus tudo secava. /Havia árvores altas e frondosas que deixavam pender seus frutos, /pereiras, romãzeiras e macieiras de frutos brilhantes; /figueiras que dão figos doces e viçosas oliveiras. /Mas quando o ancião estendia as mãos para os frutos, /arrebatava-os o vento para as nuvens sombrias.” (Canto 11, 582)
O Mito de Sísifo
“Vi Sísifo a sofrer tormento, /tentando levantar com as mãos uma pedra monstruosa. /Esforçando-se para empurrar com as mãos e os pés, /conseguia levá-la até ao cume do monte; mas quando ia /a chegar ao ponto mais alto, o peso fazia-o regredir, /e rolava para a planície a pedra sem vergonha. /Ele esforçava-se de novo para a empurrar: o suor /escorria dos seus membros; e pó da sua cabeça se elevava.” (Canto11, 593)
O canto das sereias
“Às sereias chegarás em primeiro lugar, que todos /os homens enfeitiçam, que delas se aproximam. /Quem delas se acercar, insciente, e a voz ouvir das Sereias, /ao lado desse homem nunca a mulher e os filhos /estarão para se regozijar com o teu regresso; /mas as Sereias o enfeitiçam com o seu límpido canto. (…)
“Prossegue caminho, pondo nos ouvidos dos companheiros cera doce, para que nenhum deles as oiça. /Mas se tu próprio quiseres ouvir o canto /deixa que, na nau veloz, te amarrem as mãos e os pés /enquanto estás de pé contra o mastro. “(Canto 12, 39)
Quantos ensinamentos, prenhes de atualidade, se escondem sob estas roupagens míticas… Também hoje abundam as sereias…
Porque o homem - síntese de finito e infinito, simbiose de luz e sombra, anjo e demónio em concorrência - permanece em seu mistério… (24/9/2024)
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