O Tanoeiro da Ribeira

sexta-feira, agosto 02, 2024

APÓS AQ TORMENTA VEM A BONANÇA...

Lembrei-me deste adágio popular ao ouvir (11/11/2023), o prólogo da cantata ‘Carmina Burana’, dedicado à deusa Fortuna: “A sorte na saúde e a virtude são-me agora contrárias; afeições e derrotas estão sempre presentes. Nesta hora sem demora tangi a corda vibrante; pois que a sorte derruba o forte, chorai todos comigo! (…) No trono da Fortuna sentei-me com orgulho, coroado com várias flores da prosperidade. Floresci então feliz e abençoado, eis-me agora caído do cume e privado da glória.” Este lamento, que nos chega das funduras da Idade Média, fez-me pensar na sociedade do tempo presente. Também ela vivia as ‘flores da prosperidade’… E, sem que ninguém o suspeitasse, chegou a ‘Covid19’ que fechou casas, escolas e igrejas; silenciou ruas; encheu hospitais e capelas funerárias; levou-nos familiares e amigos; obrigou-nos a temer a presença dos outros, mesmo dos mais íntimos; lançou a inquietação em nossas almas. Quando, já quase nos esquecíamos desse terrível flagelo que nos ‘mascarou’ a todos, uma guerra, absurda, veio semear a morte, dilacerar a paz, pôr europeus contra europeus. Como se tal não bastasse, fomos surpreendidos por uma guerra sem lei que lançou a barbárie, com milhares e milhares de mortos numa terra a que chamamos ‘Santa’… E apeteceu-me pedir aos que me rodeavam: ‘chorai todos comigo!’ Quando a inquietação me prostrava, despertou-me o canto da ‘Primavera’: “O alegre rosto da primavera oferece-se ao mundo. As forças do inverno já fogem, vencidas, com a sua roupa colorida. Flora assume o poder, os bosques celebram-na com seus cantos. Ah! (…) O sol tudo tempera puro e suave, de novo revela ao mundo o rosto de abril, o coração do homem é impelido para o amor. Sobre toda a beleza reina um deus pueril.” E questionei: É verdade, são duros os tempos de hoje… E aqueles em que nasci e vivi a minha infância não o foram? - A Europa fora arrasada pela II Grande Guerra, provocada por um Hitler sanguinário. Ainda hoje estremeço ao lembrar os horrores que vi nos campos de concentração de Dachau-Alemanha (1971) e de Auschwitz-Polónia (2013): só neste ‘campo da morte’ foram assassinados um milhão e trezentos mil prisioneiros nas suas câmaras de gás. - E na União Soviética funcionavam os Gulagues, um sistema de trabalhos forçados por onde terão passado uns 28 milhões de prisioneiros e que “matou milhões de pessoas ao longo de décadas. No entanto, é difícil apontar um número que chegue perto da exatidão, porque muitos eram libertados poucos dias antes de morrer”. Jamais esqueci o livro “Os Horrores da Sibéria” que li na juventude. Entre nós, era o desemprego, a carestia de vida, o racionamento de bens alimentares, a fome, a miséria… “Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe”, diz a sabedoria popular… Animado pela esperança, deixei-me elevar pela força da arte que nos transporta para outra dimensão, uma ‘realidade heterocósmica’, como lhe chamou o filósofo francês, Etienne Souriau. A arte é, verdadeiramente, o limiar da transcendência… e um lenitivo para as amarguras da vida… Foi uma hora de pura fruição estética desta ‘cantata cénica’, composta por Carl Orff, em 1936, que musicou 24 dos 254 poemas dum manuscrito da Baviera dos séculos XI,/XII/XIII. Aconteceu na Casa da Música, com a ‘Sala Suggia’ lotada por uma assistência que se deliciou com a interpretação da Orquestra Sinfónica do Porto-Casa da Música apoiada por 184 coralistas do ‘Coro Casa da Música’, ‘Ensemble Vocal Pro Musica’ e ‘Coro Infantil Casa da Música’ E ainda por três solistas convidados. Foi muito bom!... Mais um serviço que a Casa da Música, inaugurada em 15 de abril de 2005, prestou à Cultura e à Cidade. Amigo leitor, agora que as férias nos abrem a porta, procuremos usufruir do bem que a natureza nos oferece. Há que recarregar energias para as tarefas que o futuro nos reserva. A arte e, especialmente, a música podem ser uma boa ajuda… Bom descanso para todos. Mas é durante as férias que os ‘frágeis’ mais sofrem o peso da solidão e mais abandonados se sentem… Não os esqueçamos. (31/7/2024)