PRÉMIO NOBEL DA LITERATURA 2023 - (II) - 'O EU É UM OUTRO'
“O catolicismo influenciou o Septologia, disso não tenho dúvidas, é óbvio.” (Jon Fosse)
Dos três volumes, de leitura independente, que compõem a Septologia. li o segundo que dá título ao meu texto. E recordei as vezes em que, olhando-me ao espelho, questiono a minha imagem refletida como se fosse outra pessoa. ‘O eu é um outro’…
No decurso duma viagem de carro, o narrador, numa longa introspeção, procura responder à pergunta que, um dia, já todos nos pusemos: Quem sou eu? Para isso, num diálogo consigo mesmo, projeta traços autobiográficos e reflete-se no protagonista, Asle, a outra versão de si mesmo, a imagem refletida no espelho…
As palavras saem em catadupa, sem pontos finais, ao ritmo do pensamento, conectadas por ‘penso eu’. E os “pensamentos como que se sobrepõem todos uns aos outros, não se desencadeiam como uma sequência ordenada, mas ocorrem todos ao mesmo tempo, penso eu” (pág. 220)
“Na busca do indizível, as contradições são aquilo que melhor expressa o drama de estar vivo” (Público, 22/3/2024).
Exemplificando…
. A conversão ao catolicismo - “penso que foi só depois de ter conhecido a Ales (namorada) que comecei a pensar que só Deus é que esteve próximo da irmã Alida quando ela morreu e que ela agora descansa na paz de Deus, na luz de Deus, penso eu, pois a morte não é um desejo de Deus (…) Deus e o Homem só se voltaram a unir em Cristo, na e pela e com a morte d’Ele na cruz, assim na morte reencontram-se agora o Homem e Deus, penso eu” (pág. 108)
. Imanência e Transcendência: Arte e Fé – “mas encontrei o meu lugar dentro da Igreja, penso eu, e isso de se considerar católico, bem, não é apenas uma questão de fé, mas antes um modo de estar na vida que pode assemelhar-se a ser artista, dado que ser artista (…) também é um modo de estar no mundo, e para mim esses dois modos de estar no mundo são compatíveis, por assim dizer apontam numa outra direção, para algo que também existe no mundo, algo imanente, como se diz, e para algo que aponta para fora do mundo, que é transcendente, como se diz” (pág. 179)
. A força da Oração – “ e penso de novo que o reino de Deus está dentro de mim, porque existe um reino de Deus, penso eu, e sinto-o quando me benzo, penso eu, fazendo o sinal da cruz, e isso faço eu a torto e a direito (…) quando uma dor me atormenta, e por falar nisso quando um sentimento de gratidão me invade (..) há uma força nisso, isso é certo, sim, embora seja impossível dizer que espécie de força é essa, pois a força existe sem palavras, mas ela está lá, essa força, e isso é experiência.”(pag. 180))
. Deus fala no silêncio – “pois Deus fala em silêncio a partir de tudo que existe, e este silêncio só foi quebrado quando o Verbo entrou no mundo, quando Cristo veio ao mundo, só então as palavras de Deus puderam ser ouvidas, sim, também se pode pensar assim (…) quanto maior é a minha escuridão mais perto de mim está Deus, penso eu, esta é a minha experiência, penso eu” (pág. 218)
E eu lembrei o pensamento de B. Pascal: “é o coração que sente Deus e não a razão”. Crer em Deus é sentir Deus a partir da totalidade do ser.
. Deus está nos nossos anseios –“penso muitas vezes (…) costumo rezar uma oração em silêncio e nessas ocasiões a Ales também está perto, e os meus pais, e a irmã Alida, e a avó, e experimento uma tranquilidade interior e penso que dentro de todas as pessoas existe um anseio profundo, pois sempre ansiamos por algo, e achamos que é por uma coisa ou por outra, que é por isto ou por aquilo, que é por este objecto ou por aquele, mas na verdade ansiamos por Deus, pois o Homem é uma oração contínua, é uma oração através do anseio, penso eu” (pág. 220)
E vem-me à mente a oração de Santo Agostinho:
“Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em ti”.
. “Revelaste estas coisas aos pequeninos (Mt 11,25) - “e digo repetidas vezes para mim mesmo, enquanto inspiro fundo Senhor e enquanto expiro devagar Jesus, enquanto inspiro fundo Cristo e enquanto expiro devagar Tem piedade e enquanto inspiro fundo De mim” (pág.254).
Estas são as últimas palavras do livro e quem as escreveu foi um Prémio Nobel da Literatura. (5/6/2024)
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home