"PERGUNTO-ME AGORA: ONDE ACABO EU E COMÇEA O MEU CÃO?"
“A Azinhaga deu-me o que Lisboa não poderia ter dado: aqueles campos, aqueles olivais, a lezíria, o rio Almonda (…) o Tejo e as marachas, os porcos que meu avô Jerónimo guardava, os passeios de barco, as manhãs de pesca, os banhos. (Cadernos de Lanzarote – Diário III e Diário IV, página 277)”
Estas palavras, escritas por José Saramago, levaram-nos até Azinhaga do Ribatejo, no concelho da Golegã, onde o Almonda desagua no Tejo.
Aproveitando a estadia em Fátima, descemos a serra d’Aire e embrenhámo-nos na verdura dos milheirais ribatejanos em busca da terra, no concelho da Golegã, que foi berço do, até ao presente, único Prémio Nobel de Literatura, de língua portuguesa.
O GPS levou-me até ao monumento custeado pelos seus leitores e li o poema inscrito no prédio que lhe fica defronte - “homenagem da Junta de Freguesia de Azinhaga 1922-2022”:
“Largo da Praça/De feira franca/Os homens vão/Vão por desgraça/Na tarde branca/Na tarde baça/Buscar patrão. Gestos fugazes/Nessa intenção/E os capatazes/De olhos sagazes:/’Querem patrão’? / Foices de louros/Rosas na mão…” (Augusto do Souto Barreiros).
E foi com emoção que, uns metros a seguir, me deparei com a placa: “Aqui nasceu em 16.11.1922 JOSÉ SARAMAGO Premio Nobel da Literatura em 1998”.
E logo lembrei o início do seu discurso (7/12/1988). na Academia Sueca.
“O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa dum novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto meia dúzia de porcos de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo.
Chamavam-se Jerónimo Meirinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro.
No inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa.”
Recordei, então, minha mãe que, quando levava o balde de comida aos porcos, os tratava por ‘meus meninos’ e, na hora da matança, ia com o caneco buscar água à fonte para não ouvir os seus gritos.
E interroguei-me: o que ficou desse menino que afirmou:
“Ajudei muitas este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que acionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e transportei ao ombro.” (idem)?
Para responder, quando cheguei a casa, fui revistar os “Cadernos de Lanzarote” e encontrei muitas marcas dessa infância.
A primeira que me surgiu, logo na abertura dos cadernos, em 2 de Janeiro de 1995 (página 9), foi o cuidado que dedicava aos animais.
”Assim como veio, assim se foi. Não vieram reclamá-lo os donos, simplesmente saltou o muro baixo e desapareceu. (…) Buscá-la no meio destes campos, enegrecidos, não poderia ser diferente de procura uma agulha num palheiro. Ainda assim, batemos os arredores até que se fez noite…”
Símbolo maior deste carinho que pontilha todo o Diário é a nota que escreveu em 19 de agosto de 1996
“Agora mesmo um após o outro, os cães que vivem nesta casa – o Pepe, a Greta, o Camões – deram as suas três voltas, deitaram-se aos nossos pés, e suspiraram. Eles não sabem que também eu suspirarei quando me deitar. Provavelmente, todos os seres vivos suspiram assim quando se deitam, provavelmente está feito de suspiros o silêncio que precede o sono do mundo. Pergunto-me agora: onde acabo eu e começa o meu cão? onde acaba o meu cão e começo eu? (pág. 390)
Esta reflexão trouxe-me à mente o que dizia o nosso José Carlos, veterinário com especialização, em Bristol, sobre pequenos animais:
‘Se as pessoas de idade soubessem o bem que faz ter um animal de companhia em casa, não haveria cães nem gatos abandonados em Portugal’. (16/10/2024)
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