O Tanoeiro da Ribeira

quinta-feira, julho 25, 2024

VAMO CONHECER A NOSSA TERRA - (V) - ENTRE O LEÇA E O ONDA

No primeiro aniversário da morte do P. Pedro Gradim, inicio esta viagem em Leça do Balio onde foi pároco durante décadas e veio a falecer. Estamos na frente de “um dos mais notáveis exemplares da nossa arquitetura guerreira-religiosa da Idade Média, um admirável templo gótico do séc. XIV”, como o P. Pedro disse quando (23/5/2018), recebeu e guiou o grupo Boa Memória na visita à sua igreja/mosteiro. Já em 1003 há notícias de um mosteiro que D. Teresa, mãe do nosso primeiro Rei, veio a doar, no séc. XII, à Ordem Militar dos Hospitalários (Ordem do Crato, Ordem de Malta) que fez dele a sua sede. Mais do que a monumentalidade do edifício e a lembrança do casamento de D. Fernando com Leonor Teles (15/5/1372), mergulhei nas minhas memórias pessoais. Recuei ao ano de 1959 em que, por convite do então vice-reitor do seminário da Sé, Dr, Manuel Martins, natural desta freguesia, aqui vim tirar o compasso. E não pude ignorar o Coro Gregoriano do Porto que, para além dum concerto de homenagem a D. Manuel Martins, aqui veio cantar nas suas exéquias. E ao olhar a residência paroquial, lembrei o P. Pedro que, nas ‘bodas de prata’ da ordenação presbiteral, convidou os condiscípulos para uma celebração eucarística na capela do seminário da Sé a que se seguiu o almoço nesta casa paroquial. Como recordo a felicidade com que nos mostrou as obras da paróquia. Se Leça do Balio é terra de remotas origens, bem mais antigo é o castro do Monte Castelo ou de Guifões, o primeiro lugar habitado do atual concelho de Matosinhos. Da ‘Idade do Ferro’, foi habitado durante mil anos - desde o século V a. C. até ao século V d. C.. Importante entreposto comercial situado junto do estuário do rio Leça, aí chegavam mercadorias vindas do mar e daí partiam produtos trazidos da terra. Quando o visitei estava encoberto por silvas e arbustos e sem qualquer placa indicativa. Valeu-me o senhor Joaquim que cultiva umas hortas nas margens do Leça junto das ruínas da ponte medieval derrubada pelas cheias de 1978/79… Em Matosinhos, demorámo-nos na igreja matriz, um esplendoroso templo (séc. XVI), com a fachada barroca (sé. XVIII) de Nicolau Nazoni, em cujo altar-mor, magnífico de talha dourada, se destaca a imagem do ‘Senhor de Bouças/Matosinhos’, do séc. XII/XIII. Próximo da praia, admirámos o monumento barroco do ‘Senhor do Padrão’, no local onde, segundo a lenda, terá aparecido, em 3 de maio de 124, a imagem do ‘Senhor de Matosinhos’. Seguiu-se a mítica ‘Boa Nova’. No rochedo por detrás da Casa de Chã, de Siza Vieira, lemos a quadra de António Nobre, o poeta ultrarromântico (1867-19000): “NA PRAIA LÁ DA BOA NOVA, um dia /Edifiquei (foi esse o grande mal) /Alto Castelo, o que é a phantasia/ Todo de lapis-lazzuli e coral” No miradouro por detrás da capela, alongámos o olhar pelo esverdeado do mar que, nos confins do horizonte, se confundia com o azul do céu. Deixámo-nos ficar em silêncio a ouvir as ondas que marulhavam a nossos pés. E veio-me à mente o livro de S. Boaventura, ‘Itinerário da Mente para Deus’… Reconfortados, prosseguimos por caminhos da história e parámos na praia da Memória, junto do obelisco inaugurado em 1840, onde uma placa explica a razão do seu nome: “Em honra de Sua Majestade Imperial Dom Pedro , Duque de Bragança – primeiro Imperador do Brazil e quarto Rei deste nome em Portugal – Comandante em chefe do Exército Libertador aqui desembarcado em oito de Julho de mil oitocentos e trinta e dois – Para restituir o throno a sua Augusta Filha – a Rainha reinante Dona Maria Segunda e a Liberdade aos Portuguezes - se erigiu este padrão para perpétua memória”. E o passeio terminou na praia de Angeiras nos tanques que os Romanos cavaram nas rochas para salga do peixe onde produziam o famoso ‘garum’ (molho de peixe) que levavam para Roma. E termino com uma invocação como iniciei… Porque estava em Lavra, terra do P. José Domingues, pároco de Labruge, Aveleda e Vilar do Pinheiro, rebobinei a fita do tempo até julho de 1972 e lembrei a sua missa nova. Pareceu-me ainda ver sorrisos de felicidade no rosto de toda a gente… Como sabe bem recordar… (24/7/2024)

terça-feira, julho 23, 2024

PELA DIGNIFICAÇÃO DOS POVOS COLONIZADOS - EM MOÇAMBIQUE - (III) - O PALADINO

Já por três vezes falei, aqui, de D. Manuel Vieira Pinto. O primeiro texto – ‘Um Bispo de Coração Quente’ (20/10/2010) – iniciava com o diálogo relatado por Anselmo Borges: “Porque é que Você, que é bispo, quando vem falar comigo, nunca fala de Deus e da religião, mas do povo, da defesa dos seus direitos e da sua dignidade?”, perguntou o presidente Samora Machel. – “Porque um Deus que precisasse da minha defesa seria um deus que não é Deus. Deus não precisa que O defendam. O Homem, sim”, respondeu D. Manuel”. No segundo – ‘Na memória também se vive’ (26/6/2019) - evoquei a minha emoção, na Casa Sacerdotal, ao deparar-me (31/5/2019) com a sua debilidade. Que dor a minha ao ver num estado de absoluta prostração o sacerdote que mais me marcou a vida!... A última vez que o vira fora numa visita que, em 1974, com outros colegas do Porto, lhe fiz em Cartaxo após a expulsão de Moçambique. O terceiro, por ocasião do seu falecimento (30/4/2020) - “Memórias de um Amigo” (3/6/2020) - terminava com um voto: “Que a memória não silencie quem nunca se deixou silenciar”. Volto a relevar este ‘paladino de uma nova forma de ser Igreja”, a propósito do livro Moçambique…A Intervenção da Igreja Católica que venho citando. Limito-me a fazer eco da sua palavra. 1.º “Repensar a Guerra” – Homilia na catedral de Nampula, no Dia da Paz (1/1/1974) - “Eu quero falar-vos uma vez mais da paz” (…) - “Falar de paz em Moçambique, sem falar lealmente da guerra que o mancha de sangue, seria iludir o problema fundamental, seria aumentar a violência. “ (…) Enfrentemos a guerra e as interpelações que ela nos faz.” - A Igreja vê na autodeterminação política dos povos um sinal positivo do crescimento da consciência e da liberdade do Homem e dos povos e, ao mesmo tempo, um avanço no processo de libertação e de comunhão da humanidade em Jesus Cristo”. - Se a paz e a guerra passam também por esse direito, falar da paz e da guerra, aqui e hoje, sem falar do direito de autodeterminação e do seu conteúdo, será certamente iludir um problema de fundo”. (Nota: Vários padres do Porto fizeram desta a sua homilia, precisamente, no domingo anterior ao ‘25 de Abril’) 2. “Um imperativo de consciência” – Publicado em 2 de fevereiro de 1974. Se a homilia anterior provocou um ‘tsunami’, a sua assinatura neste documento, elaborado pelos missionários e missionárias combonianos, originou a sua expulsão (14/4/1974). - “Enviados para anunciar o Evangelho. (…) Com essa finalidade, passamos a anunciar as decisões que, em consciência, julgamos dever tomar.” - A Igreja renuncia ao seu múnus profético: .“Não reconhecendo que o povo de Moçambique tem o direito que lhe é conferido por Deus à sua própria identidade e a construir por si mesmo a sua história”. . “Não iluminando acontecimentos graves tais como a guerra e suas consequências. Aceita uma situação de guerra, seguindo a orientação do Governo de que se trata de uma guerra imposta e não se preocupa em saber se, na verdade, se trata do esforço deste povo de Moçambique para chegar à sua identidade”. 3. “Carta de D. Manuel ao presidente Samora” – Escrita em 1986, denuncia “concretamente as violências que, neste momento, mais humilham e esmagam o Povo, que mais destroem o país e o enchem de vergonha e sangue: os massacres, as execuções sumárias, os assassínios indiscriminados, as crueldades e as torturas”. “Como diz o Povo, ‘os homens da Renamo desprezam a matam’, ‘os homens da Frelimo desprezam e matam’. Uns e outros não têm pejo em assassinar (…) não sabem mais o que é o respeito pela vida, (…), por isso cometem assassínios a frio: a golpes de baioneta, golpes de martelo, de machado ou chicote; por decapitação, por esquartejamento, pelo fogo ou pelo enterramento das vítimas ainda vivas e obrigadas a abrir a sua própria cova.” - “Não será a civilização do ódio, da violência e da morte, a civilização da paz e do progresso dos homens e dos povos, mas sim, a civilização da justiça e do amor”. Concluindo… E ele foi um ‘bispo de coração quente’ quando, na cerimónia oficial da sua chegada a Nampula, rompendo o protocolo, se abeirou da população africana e “arranca dos braços duma mãe negra o filho que ergue em direção ao sol” (pág. 206). Estava traçado o seu destino… (17/7/2024)

quinta-feira, julho 11, 2024

PELA DIGNIFICAÇÃO DOS POVOS COLONIZADOS - EM MOÇAMBIQUE - (II) - O PROFETA

O segundo ‘bispo reformador’ com ligações ao Porto, referido no livro em análise, “Moçambique (…) A Intervenção da Igreja Católica” é “D. Sebastião Soares de Resende (que) foi ordenado padre da Diocese do Porto, (21/10/ 1921), e ali exerceu o seu múnus sacerdotal até à nomeação para a Diocese da Beira - 21/4/ 1943”. (pág. 134). Doutorado em filosofia e teologia, pela Universidade Gregoriana de Roma, foi professor no Seminário Maior e cónego da Sé do Porto. Amigo e companheiro de D. António Ferreira Gomes, outro bispo que muito perturbou Salazar. “Será correto afirmar que a contestação da política portuguesa na importante colónia portuguesa do Índico foi iniciada pelo ‘Profeta em Moçambique’ (Carlos A. Moreira Azevedo (…) Para D. Ernesto Gonçalves Costa, seu colega no episcopado, D. Sebastião (…) esteve sempre na vanguarda dos que mais defenderam e lutaram pela justiça, pelos direitos humanos e pela elevação e educação dos moçambicanos”. (pág. 151) “Na senda de D. António Barroso, D. Sebastião foi uma voz que se ergueu no deserto, em defesa dos direitos do homem africano. Foi no seguimento das suas reflexões que o processo de discussão do papel da Igreja no mundo moderno foi encetado.” (pág. 153). “O discurso de D. Sebastião era claramente pela igualdade racial, pela justiça, pelo apelo à verdade.” (idem) A antonomásia de D. Carlos e o testemunho de D. Ernesto fizeram-me evocar dois textos que publiquei em 2010 No primeiro - ‘Um Bispo que incomodou Salazar’ (VP, 20/1/2010), realcei o seu papel profético: - No Anúncio - Apóstolo da Palavra privilegiou a escrita para o que criou o “Diário de Moçambique” (“Um jornal é mais importante que três ou quatro missões.”, dizia). E difundiu a Palavra através da Rádio Pax. Logo na primeira das suas quinze pastorais, afirmou que pretendia lutar por um conjunto de princípios e ia empenhar-se na resolução de graves problemas que assolavam a sociedade africana. - Na Denúncia - “Impera na Beira a escravatura!”; “ Querem o preto selvagem para continuar a ser animal de carga.” - No Prenúncio -“ Haverá no futuro muito sangue a correr em África”; “Moçambique tem os seus direitos e uma vez que seja possível, deve tornar-se independente, com negros e brancos a governar”. - No sofrimento - O seu jornal foi suspenso por três vezes; todos os seus movimentos eram controlados pela PIDE e, em 1962, Salazar impediu a sua nomeação para Arcebispo de Lourenço Marques. - Na democratização do ensino - Criou muitas escolas básicas. Introduziu o ensino secundário na Beira. Fundou escolas para professores, especialmente nativos. Lutou pela “ Universidade da África Portuguesa aberta igualmente a todas as raças e dotada de todas as faculdades”. - Na ida de missionários estrangeiros, ao arrepio da vontade de Salazar. Fizeram História os “Padres de Burgos” na denúncia dos massacres de Wiriyamu. Na igreja moçambicana, deu especial relevo à ordenação de padres negros, contrariando o Governo Português. Este texto mereceu uma palavra de agradecimento do seu sobrinho Monsenhor e Cónego P. Sebastião Brás, à época. diretor do Colégio de Ermesinde, e uma entrevista que evoquei em ‘Ecos de um texto (VP, 17/2/2010) como caixa de ressonância de D. Adriana Pereirinha que contactou a VP dizendo que conhecera D. Sebastião, na Beira, e que gostaria de falar comigo. O encontro que tivemos no Lar da Misericórdia de Gaia, concluiu com este testemunho: “O Senhor Bispo era uma boa figura, alto, elegante. Conversava calmamente, não fazia aceção de pessoas, tanto falava com ricos como com pobres, com brancos e com os negros. Era uma pessoa muito modesta, sem vaidades. Prova disso foi a sua última vontade: quis ser enterrado numa simples campa rasa, no caminho central do cemitério da Beira para que todos pudessem passar por cima dele. A sua campa diz apenas: ‘Sebastião, primeiro Bispo da Beira”. Termino com as palavras de D. Eurico Dias Nogueira, que foi bispo em Moçambique e em Angola e, também, Arcebispo de Braga: “D. Sebastião foi demasiado grande para ser compreendido por homens demasiado pequenos”. - pág. 150 (10/7/2024

quarta-feira, julho 03, 2024

PELA DIGNIFICAÇÃO DOS POVOS COLONIZADOS - EM MOÇAMBIQUE - (I) - O PRECURSOR

Se, ao falar do ’25 de Abril’, não podemos esquecer os seus 3 D’s – Democratizar, Descolonizar, Desenvolver – também não se pode ignorar o papel de figuras da Igreja na defesa e promoção dos povos colonizados. Como homenagem a uma das maiores, D. Manuel Vieira Pinto, no centenário do seu nascimento (Aboim, Amarante - 9/12/1923), foi apresentada (20/1/2024) a obra ‘Moçambique – da Descolonização à Guerra Colonial – A Intervenção da Igreja Católica, de Amadeu Araújo e Manuel Vilas Boas. No capítulo IV deste livro onde se cruza o rigor histórico com o testemunho vivencial dos seus autores, brilham - como resposta “da Igreja ao drama da exploração do homem africano” - “três grandes bispos missionários reformadores, que têm em comum, também uma ligação profunda à Diocese do Porto” (pág. 133). O primeiro, ainda no tempo da Monarquia, a erguer a voz foi o ‘nosso’ D. António Barroso. Deixo-vos com as suas palavras… - Na Sociedade de Geografia de Lisboa ((7/3/1889), lamentou o contraste: ”Os missionários pregariam, sem dúvida, que os homens eram irmãos. (…) tratariam com carinho e bondade os seus súditos (…). Ao lado, porém, (…) estava o comprador de homens, o que estrangulava os laços que prendiam o filho ao pai, e a mãe à filha; o despovoador da região, o destruidor de todos os afetos, o homem sem coração, que ganhava punhados de ouro vendendo aquele que a religião lhe dizia ser seu irmão” (pág. 140) - Numa viagem que efetuara à Zambézia, denunciou os ‘muzungos’ - de pele clara, geralmente portugueses’ - que “devoravam como cancros o país’: “Esta Zambézia tem sido (…) um covil de crimes que nos desonram. (…) Nestas coisas o preto é, em geral, quem paga as despesas e são os ‘muzungos’ que recolhem os proveitos”. (pág. 42) - E desmitificou três preconceitos racistas, então, muito em vigor: 1.º - ‘O preto é incivilizável’: “Sei que há muito quem negue à raça preta a faculdade de se levantar da sua degradação atual, declarando-a incivilizável; na minha opinião, nada mais falso do que este juízo; o preto é hábil como os brancos, e eu poderia citar muitos exemplos para comprovar o que avanço. Todo o mal nasce do meio inicial em que vive”. 2.º - ‘As crianças negras não são educáveis’: “Se me derem vinte crianças pretas e vinte crianças brancas para eu educar, segregadas umas e outras de todo o contacto externo à missão, eu prometo fazer dos pretos homens tão aptos, tão laboriosos e enfim tão honrados como os brancos (…) “O preto pequeno, nem é destituído de inteligência, nem é desobediente e perverso; pelo contrário, é dotado de boas qualidades, que brevemente perde, atendendo às circunstâncias em que vive”. 3.º - ‘O preto não gosta de aprender nem de trabalhar’: “É muito fácil afirmar que o preto é rebelde à instrução e ao trabalho, é um estribilho banal que à força de repetido parece um axioma, e é falsidade, mas é um pouco mais difícil criar-lhes escolas que justifiquem merecer tal nome, e instituições de ensino adequado ao seu desenvolvimento e modo de ser atual. Enquanto a experiência se não fizer, eu pela minha parte, continuarei a acreditar que o preto é muito suscetível de aprender e de trabalhar, conquanto que lhe facultem meios eficazes” (pág. 143) Interpretando o pensamento de D. António, o seu secretário e biógrafo, P. Oliveira Braz, escreveu: “Nunca a violência foi meio adequado a consolidar o reconhecimento perdurável d’uma soberania; e, por isso, os processos de colonização, por nós adotados, amarguravam sobremaneira a alma do bondoso prelado pela sorte do pobre preto, sempre vitima da crueldade dos capitães-mores e ‘mazungos’ e do abandono moral e material a que tem sido votado pela mãe pátria” (pág. 141). A concluir: “D. António Barroso foi decerto a primeira voz que recorrentemente se fez ouvir nas repartições públicas e nos gabinetes políticos de Lisboa, em defesa dos direitos do homem moçambicano” (pág. 143) Quando há quem se apresse a ‘reler’ a nossa História e o racismo volta a ressoar na nossa terra – às vezes, infelizmente, extrapolando factos verdadeiros, como verifiquei na viagem de Metro que acabo de fazer - é bom saber que, já no século dezanove, uma voz autorizada da Igreja se levantou para contradizer os mitos racistas, denunciar a exploração dos nativos e verberar a escravatura. Sem medos nem calculismos… (3/7/2024)