O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, dezembro 17, 2025

NOSSA SENHORA - RAINHA DO ADVENTO

Bem cedo nasceu em mim o desejo de conhecer as origens da nossa matriz cultural, greco-romana e judaico-cristã. Foi, pois, com emoção que, no Jubileu, do ano 2000, visitei, na Terra Santa, os lugares matriciais do cristianismo a começar em Belém, passando por Nazaré e rio Jordão, e terminando em Jerusalém. Seguiu-se Roma e Atenas. No verão passado, chegou a vez de visitar a Jónia da antiga Grécia, berço da filosofia ocidental - Tales, Anaximandro e Anaxímenes, de Mileto; Heráclito, de Éfeso, Pitágoras, de Samos - e Creta onde “floresceu a cultura minoica, a primeira grande civilização da Europa.” No entanto, mais do que falar da Cultura Clássica, quero dar-vos nota dos locais que me transportaram para os tempos primordiais da nossa Fé. A Casa da Virgem Maria S. João diz-nos no seu Evangelho que Jesus, na cruz, lhe confiou Sua Mãe (Jo.19,27). Os ‘Atos dos Apóstolos’ narram as perseguições em Jerusalém, após a morte de Jesus: Santo Estevão morreu apedrejado (At, 7,59) e São Tiago Maior, irmão de S. João, foi decapitado (At 12,2). Entretanto, os Apóstolos dividiram o mundo para pregar o Evangelho. A S. João foi atribuída a Ásia Menor, e, ele, para cumprir a ordem do Mestre, trouxe consigo a Virgem Maria para Éfeso, a terceira maior cidade romana, após Roma e Alexandria, onde fundou a primeira comunidade cristã da cidade. Temendo que a ‘Mãe’ corresse perigo, construiu, dentro dos bosques da montanha Bulbul, não longe da cidade, uma casa onde escondeu a Virgem Maria que, aqui, viveu e veio a morrer. Por isso, é conhecida como ‘Casa de Maria’. Também, nela viveu S. João até à sua morte, exceto enquanto esteve exilado em Patmos. É considerada local sagrado pelos cristãos (católicos e ortodoxos) e muçulmanos que veneram Maria (Meriyem Ana) como mãe do profeta Jesus. O Papa João XXIII declarou-a lugar de peregrinação. Em 1967, o papa Paulo VI visitou-a. Também aí estiveram João Paulo II, em 1979, e Bento XVI, em 2006. O Papa Francisco não chegou a visitá-la, mas, na sua viagem à Turquia em 2014, referiu-a como um sítio sagrado de grande significado para cristãos e muçulmanos. (Fotografia - A Casa da Virgem Maria, em Éfeso) A casa é uma pequena capela. A entrada faz-se por uma estreita porta abobadada. Na ábside, está uma estátua em bronze da Virgem Maria. Do lado direito, conserva-se um habitáculo que seria o dormitório da Virgem. II – A Gruta do Apocalipse “”Eu, João, vosso irmão e companheiro nas tribulações, na realeza e na paciência por Jesus, estava na ilha de Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus. Num domingo, fui arrebatado em espírito e ouvi, por trás de mim, voz forte com trombeta que dizia: ‘O que vês escreve-o num livro e manda-o às sete igrejas: a Éfeso, a Esmirna, a Pérgamo, a Tiatira, a Sardes, a Filadélfia e a Laodiceia.”(Ap 1,9) S. João, durante a segunda perseguição do Imperador Domiciano (95 d. C), foi desterrado para Patmos, uma ilha usada pelo Império Romano para exílio dos prisioneiros. Vivia numa das numerosas grutas que nela abundam e foi precisamente numa delas que recebeu a milagrosa Revelação Divina. ‘Dentro da cova, o Evangelista ouviu a mensagem e ditou-a ao seu discípulo Prócoro que a escreveu com mão trémula’. A gruta onde, segundo a tradição, esta Revelação aconteceu - “Gruta do Apocalipse” - converteu-se num local de peregrinação. A caverna, numa semipenumbra, abriga uma capela dedicada a Santa Ana, com vários ícones e turíbulos de incenso que lhe emprestam uma atmosfera mística e devocional. Aí, estão preservados os locais onde S. João apoiava a cabeça para dormir e a mão ao levantar-se. Merece especial atenção o ícone de S. João o Teólogo. Em 1999, foi declarada Património da Humanidade pela UNESCO Dois lugares de peregrinação para os cristãos, um – Casa de Maria – entregue, desde a sua restauração em 1950, aos frades Capuchinhos; outro – Gruta do Apocalipse - a cargo Mosteiro de São João o Teólogo que, desde que foi criado em 1088, sempre foi habitado por monges ortodoxos. O mesmo Apóstolo, mas duas confissões cristãs. Qual o fundamento para esta divisão? Não, a grandeza de Deus; sim, a pequenez dos homens… Que os 1700 anos do Concílio de Niceia e a recente viagem do Papa Leão XIV, à Turquia, possam ajudar a esbater as barreiras que separam os discípulos que, no Natal, festejam o Menino e veneram Sua Mãe.(VP, 17/12/2025)

quarta-feira, dezembro 10, 2025

O PRESÉPIO SOMOS NÓS...

‘A Vida em Nós’, de Tolentino Mendonça, é um jardim de esperança que nos perfuma a alma. Porque seriam pobres as minhas palavras, limito-me, neste Natal, a oferecer-vos um ramalhete com uma flor de cada um dos seus canteiros. . Amor – “Podemos alardear este ou aquele interesse, mas o amor verdadeiro precisa de ser amadurecido no silêncio e na intimidade.” . Camões – “Camões não nos deu só o poema. Se quisermos ser precisos, Camões deixou-nos em herança a poesia.” . Chorar – “As lágrimas correm de dentro para fora do nosso corpo, mas exprimem a mais recôndita e intensa interioridade.” . Cristianismo – “Uma Igreja maníaca da organização e da ordem, obcecada pelo regime da pureza, distancia as pessoas. Torna-se um lugar de cerimónia, estático e correto como um museu, mas deixa de ser um território de celebração da vida, atravessado pelo quotidiano, pela turbulência e pelas suas pegadas. Fica sequestrada pelo formalismo e pelo zelo em vez da misericórdia e da alegria.” Dificuldade – “Um dos caminhos necessários para alegria é a aprendizagem da dor. Não sabemos lidar com ela. Seria preciso, talvez, começar por ver a dor não como um obstáculo, mas como um caminho.” . Esperança – “A nossa existência é, do princípio ao fim, o resultado de uma aprendizagem da esperança, e só ela é capaz de dialogar com o futuro e de o aproximar.” . Família – “A nossa cultura tem praticado, talvez com razões, mas certamente sem razão, uma demolição sistemática da figura do pai, deixando em nós um vazio que nada consegue colmatar. A figura do pai precisa, por isso, de ser recuperada. (…) A coisa no mundo mais parecida com os olhos de Deus são os olhos de uma mãe.” . Fé – “A fé é uma história de fidelidade que se constrói, não é o mero entusiasmo de um momento.” . Felicidade e alegria – “Tantas coisas seriam diferentes se cada pessoa pudesse habitar, por pouco que fosse, a morada do seu coração.” . Imperfeição – “Às vezes parece que a nossa existência acaba nos nossos sapatos, que é a única coisa que vemos quando se tem a cabeça virada para baixo.” . Natal – “O presépio somos nós. É dentro de nós que Jesus nasce.” . Outros – “O tempo é albergar, é hospedar na nossa vida uma respiração que é maior do que nós. Saber que há um passado maior do que nós, que há um presente, que é o nosso, e que há um futuro.” . Perdão – “O perdão não é o esquecimento. Muitas vezes confundimos as duas coisas e dizemos: ‘Ah, não consigo esquecer’, como se isso significasse necessariamente ‘não consigo perdoar’. Não, uma coisa é o perdão, outra o esquecimento. Até porque há factos impossíveis de esquecer. Tal não depende, em absoluto, de alguma coisa que possamos fazer. Há ofensas que deixam marcas tão inalteráveis que não conseguimos esquecer, ainda que quiséssemos (…) A questão deve, antes, colocar-se assim: ‘Consigo perdoar uma ofensa que nunca mais vou esquecer?’” . Poesia e literatura – “Uma palavra não é apenas uma palavra: ela é sedimentação de experiência vital, evocação da memória, ponte entre presente e futuro.” . Portugal – “Cada português é uma expressão de Portugal e é chamado a sentir-se responsável por ele.” . Rezar – “Não há oração vital sem um eu diante de um tu.” . Silêncio – “Os nossos sentidos espirituais abrem-se e maturam melhor no silêncio.” . Simplicidade – “A nossa vida é um instante em aberto. Somos chamados a cultivá-la, sim, com a paciente humildade que um jardineiro reserva para o seu jardim.” . Solidão – “A amizade precisa de solidão e de intimidade, e é um acordo silêncioso entre almas.” . . Tempo – “De facto, tudo o que é humano é feito de tempo; somos um reservatório de tempo; lençóis de tempo que se vão acumulando.” . Velhice – “A velhice é um laboratório de vida presente e não só passada, uma escola onde se aprofunda o significado da esperança e do amor.” . Ver, olhar. Escutar, ouvir – “A contemplação é arte de nos aproximarmos de nós próprios.” . Vida – “Nós não temos apenas âncoras, temos também asas.” Amigo, se estes aromas o deliciaram, não fique à porta, entre no jardim… É uma boa prenda de Natal…(10/12/2025)

terça-feira, dezembro 02, 2025

QUARENTA E CINCO ANOS SÃO PASSADOS...

Foi no dia 4 de dezembro de 1980… No passado dia 10, o JN publicou um artigo de Maria Cândida Almeida, Ex-diretora do DCIAP, sob o título interrogativo “O herdeiro de Sá Carneiro?”, de que, com vénia, me faço eco. Informa: - “Durante um almoço-debate, esta semana, André Ventura afirmou querer ser o ‘herdeiro de Sá Carneiro’… “ Afirma: - “Se esse é o seu desígnio, o seu projeto político de vida, então terá de rever o seu comportamento e a prática do seu partido, no que refere à verdade, à honestidade e ao rigor com que interagem com os cidadãos, residentes, estrangeiros e apátridas que vivem em Portugal.” Contrasta: - “Sá Carneiro era um democrata. Não era racista, nem xenófobo. É recordado pela sua frontalidade e verdade com que abordava e discutia os principais problemas do país. Era um Senhor.” Conclui: - (…) “Estas são apenas algumas deturpações da verdade insistentes nos discursos de André Ventura, que o afastam e opõem à figura política incontornável que foi Sá Carneiro.” Em favor deste perfil do Dr. Francisco Sá Carneiro, lembro, no 45.º aniversário da sua morte, o que, em 2014, escrevi em ‘Nos Alvores da Obra Diocesana:’ - Humanista cristão: “Muitos foram os voluntários que trabalharam na Obra. (…) Quero demorar-me um pouco a falar de Francisco Sá Carneiro. Independentemente das opções políticas de cada um, certamente, estamos de acordo que foi o cidadão do Porto de maior relevo na história política portuguesa do século XX. Porém, não é o estadista que me interessa neste momento, mas o humanista e o cristão que muito contribuiu para o regresso de D. António Ferreira Gomes do seu longo exílio.” De seguida, enumero alguns factos que presenciei ao longo de vários anos de assídua convivência. - Convite para a direção: “Quando em 1970, por mandato de D. António, fui ao seu escritório, na rua da Picaria, convidá-lo, “agradeceu a confiança, mas declinou o convite porque não queria criar situações difíceis a D. António. Explicou, então, que ia apresentar na Assembleia Nacional uma proposta de alteração à lei que impedia o divórcio civil a quem cassasse catolicamente. Sabia que essa proposta iria provocar forte reacção nos meios mais conservadores da Igreja e seria malvista por grande parte do episcopado.” Após conversar com D. António, telefonei-lhe a dizer que o senhor Bispo aceitava correr esse risco e “ele imediatamente aceitou.” - Nas reuniões semanais de 4.ª feira à noite: “Normalmente, antes das reuniões, relatava os acontecimentos mais relevantes da política portuguesa. Certo dia, vinha desapontado com o rumo que a ‘primavera marcelista’, em que acreditara, estava a seguir. Tinha ido com uma comissão de deputados falar sobre a situação dos ‘presos políticos’ com o Ministro do Interior, creio, Gonçalves Rapazote que, como ele era advogado. Ao iniciar a conversa, começou por dizer-lhe. ‘O senhor ministro como ‘homem do direito’, mas este logo o interrompeu dizendo: Senhor deputado, o senhor está a falar com o Ministro; o ‘homem do direito’ ficou lá fora.” - Esboço dum ‘Senhor’: “A sua presença nas reuniões era prestimosa, não só pela visão humanista da vida com forte influência personalista e a correspondente defesa dos valores humanos, mas também pelo rigor lógico das suas análises. Mas era particularmente importante nas reuniões que a direção tinha com os responsáveis camarários onde sobressaía a sua força argumentativa. Não eram tempos fáceis… Numa figura franzina e apequenada, escondia-se a robustez de um carácter que não recuava perante nada nem ninguém. ‘Homem de antes quebrar que torcer’, defendia até à exaustão aquilo em que acreditava. De trato cortês, mas reservado, mantinha um perfeito domínio sobre as suas emoções. “ - Em conclusão… “O Porto honra-se de ter estado em todos os grandes momentos que marcaram a história de Portugal. Esteve nas raízes da nacionalidade, dando-lhe nome e contribuindo para a conquista de Lisboa; nas lutas pela Independência com o apoio ao Mestre de Avis; na empresa dos Descobrimentos, com o Infante D. Henrique; na monarquia liberal com a revolução de 24 de Agosto de 1820 e o Cerco do Porto; na implantação da República com a revolta de 31 de Janeiro de 1891. No derrube do Estado Novo e na implantação do regime democrático, o Porto pode orgulhar-se de ter Sá Carneiro como seu grande representante.” (página 52) Há apropriações e evocações que me ferem a memória e ressoam a profanação. (3/12/2025)

quarta-feira, novembro 26, 2025

VAMOS CONHECER PORTUGAL - V - ONDE A HEROICIDADE TEM NOME DE MULHER

Os de Monção orgulham-se da sua Deu-la-Deu Martins, figura lendária que levou os castelhanos a levantar o cerco a Monção, no reinado de D. Fernando. Com o resto da farinha, cozeu os últimos pães, subiu ao alto da muralha e, daí, atirou-os para o exército inimigo, gritando: ‘Como nós nos achamos bem providos e sabemos que vós estais com fome, aí vos mandamos estes pães e mais vos mandaremos se os pedirdes!”. Os castelhanos acreditaram que ainda havia muita abundância dentro da muralha e foram-se embora. Já em Melgaço, a heroína é Inês Negra. Aconteceu no tempo de D. João I que cercou o castelo de Melgaço (1388) partidário de Castela. Inês Negra, uma camponesa franzina, combatia ao lado dos portugueses até que apareceu, do lado dos castelhanos, a ‘Arrenegada’, uma mulher avantajada, que a desafiou para uma luta. Após um combate corpo a corpo, entre socos, pontapés, puxões de cabelo, dentadas e unhadas, a ‘Arrenegada’, descabelada e ensanguentada, acabou por cair por terra inanimada, enquanto, Inês, aclamada vencedora, era levada em triunfo para o arraial. No dia seguinte, o castelo entregou-se, sem resistência, às forças de D. João I. Para reviver a artimanha de Deu-la-Deu, espraiar os olhos pelas águas tranquilas do Minho que lhe correm aos pés, vamos começar o nosso passeio na fortaleza de Monção, erguida por D. Dinis. Depois… Subimos até ao Mosteiro de Sanfins de Friestas. Contemplamos a sua igreja românica que remontará ao século VII, extasiamo-nos com a amplitude da paisagem que desce até ao rio e respirámos a frescura da sua mata de carvalhos. Descemos e admiramos a ‘Torre da Lapela’, relíquia majestosa duma imponente fortaleza afonsina na margem do Minho. Seguimos para o mosteiro de S. João de Longos Vales, monumento nacional desde 1926, mandado construir por D. Afonso Henriques e entregue aos Cónegos Regrantes. O que mais nos impressiona é a ‘cachorrada’ da igreja românica com forte influência da Sé de Tui. Paramos na medieval ‘Ponte do Rio de Mouro’, onde, em 1386, D. João I se encontrou com o Duque de Lencastre e acordou o seu casamento com a sua filha Dona Filipa que esteve na origem da ‘Ínclita Geração’. Já no concelho de Melgaço, começamos no Convento das Carvalhiças, de estilo maneirista, onde o Coro Gregoriano do Porto (5/4/2003) cantou a Missa e deu um concerto de poesia e canto. Seguimos para o Mosteiro de Paderne, do século XI, românico, monumento nacional desde 1910, onde sobressaem, na fachada principal, os capitéis e a arcada. Continuamos para o Castelo de Melgaço dominado pela torre de menagem, (século XII), a sentinela mais setentrional de Portugal, onde podemos reviver a vitória de Inês Negra. É património nacional desde 1910. Em direção à fronteira de S. Gregório, paramos na Senhora da Orada (monumento nacional), românica e coeva da formação da nacionalidade. Daí, subimos até ao mosteiro de Santa Maria de Fiães, do século IX, que pertenceu à Ordem de Cister. Depois, sucedem-se os píncaros desnudos da serra da Peneda, até ao Santuário da Senhora da Peneda, (século XVIIII) com uma imponente escadaria e coroado por um enorme penedo a que, dada a sua configuração, o povo chama Moisés. (Fotografia do Moisés) E a viagem termina em Castro Laboreiro- vila e sede de concelho de 1134 a 1855 - onde, já lá vão 50 anos, passámos uma semana, ainda as casas eram cobertas de colmo e as mulheres iam à missa com a sua capinha de burel. E lembro a amabilidade do pároco, P. Aníbal Rodrigues, que sempre nos acolhia no café, um apaixonado pelos dólmens e pelas gravuras rupestres das redondezas. E, como chave de ouro, subimos o altaneiro castelo, monumento nacional desde 1944, para tonificar os pulmões e, lá bem no alto, alongar o olhar pelas lonjuras do horizonte e descortinar as ‘brandas’ou ‘verandas’, no planalto, onde as famílias viviam com o seu gado durante o verão para aproveitar o pasto dos montes, e as ‘inverneiras’, na fundura dos vales, aonde se acolhiam, no inverno, para fugir à neve e cultivar as suas magras courelas. Obrigado pela vossa companhia. Espero que tenham gostado… (26/11/2025)

quinta-feira, novembro 20, 2025

NEM 'VALE DE LÁGRIMAS'...NEM 'MAR DE ROSAS'...

A inspiração para este texto nasceu no Dia de Todos-os-Santos, ao ouvir, na TV, uma jovem dizer que a ‘gente mais nova já não está para essas coisas’. E confirmou-se quando, ao visitar os cemitérios, vi poucos jovens e nenhumas crianças… O Homem, ‘ser bio-psico-social’ no dizer de Edgar Morin, é, na espiritualidade, que encontra a plenitude. ‘Ser das lonjuras e do simbólico’, procura um sentido para o imediato e o concreto em que vive mergulhado. Abre-se ao outro e ao ‘para além’. E aí, encontra as coordenadas que lhe orientam o agir: a da horizontalidade que, na sua imanência, o relaciona com os seus iguais - Ética - e a da verticalidade que o eleva à Transcendência - Religião. A antropologia afirma que, na Antropogénese - evolução da espécie - o ‘culto dos mortos’ é o primeiro sinal da espiritualidade humana. O ‘Homem de Neandertal’, há uns 400 mil anos, punha flores junto dos corpos que enterrava. No Paleolítico Superior, uns 50 mil anos atrás, colocavam no túmulo objetos do quotidiano Estes rituais indiciam que, já então, o homem despertava para o sentido do sagrado e do transcendente. O corpo é mais que um cadáver em decomposição. O outro pelo facto de morrer não deixa de fazer parte da vida. Ao longo dos séculos, com formas variadas, estes ritos perpassaram todas as culturas. Na atualidade, o homem, autoconvencido da sua omnipotência científica e tecnológica, ignora a finitude e recusa o mistério. Por isso, não encontrando remédio nem sentido para a morte, procura varrê-la para debaixo do tapete. E esta transformou-se no último dos seus tabus. A este propósito, quero partilhar convosco um texto que li no facebook: “Vivemos tempos estranhos. Pais que afastam os filhos dos funerais - “para não traumatizar?” – mas vestem-nos de mortos-vivos e fantasmas no Halloween. Dizem que o luto é pesado demais para uma criança. Mas o que é mais pesado? Ver alguém partir com amor e verdade, ou crescer sem nunca aprender a lidar com a perda? A morte não é um espetáculo, é um mistério. E escondê-la não protege – confunde. Quando a criança não é ensinada a despedir-se, ela aprende a fugir da dor. E quem foge da dor, um dia não saberá o que fazer com ela. (…) O Halloween banaliza o feio, o assustador, o sombrio – transforma o medo em entretimento. Mas o medo não educa. Dessensibiliza. E uma criança que brinca com o medo macabro, sem entender o sagrado da vida e da morte, cresce sem bússola emocional, sem reverência, sem profundidade. Não se trata de proibir festas. Trata-se de ensinar o que tem valor. De mostrar que a beleza é mais forte que o grotesco, que o amor vence a escuridão, que a fé dá sentido ao fim. Leva os teus filhos a um funeral. Deixa-os ver o amor que chora, a lágrima que despede, a mão que acaricia pela última vez. Ensina-lhes que morrer faz parte de viver. Porque uma criança que aprende a enfrentar a morte, saberá amar sem medo, sofrer sem se perder, e acreditar na vida que continua. Não é o Halloween que assusta. É a indiferença. É criar filhos que sabem brincar com o escuro, mas não sabem acender a luz.” (Padre João Torres). E recordei os tempos da minha infância em que partilhávamos do sofrimento da família quando alguém falecia e assistíamos ao seu funeral. Isso ia criando antídotos para momentos mais dolorosa da vida. Falemos dos ‘nossos queridos mortos’ às crianças. É a forma de lhes dar vida e de os tornar presentes no seu dia a dia. Uma vez por outra, convidemo-las a ir ajudar-nos a enfeitar os seus jazigos. Façamos silêncio e rezemos. E se nos virem a chorar, não faz mal, ficarãom a saber que, quando nos morre alguém, as lágrimas se escondem, silenciosas, no coração, sempre prontas a saltar-nos para os olhos… Razão tinha o saudoso Papa Francisco ao questionar esta sociedade que “oculta a morte porque isso empobrece a humanidade e rompe com os laços da compaixão”. É tempo de se rever ao espelho, esta sociedade, geradora de frustrações, que não prepara as crianças para a dureza dos dias. A terra não é um ´vale de lágrimas’, mas também não é um ‘mar de rosas’… Há horas para tudo, diz a Sagrada Escritura: “Há tempo para nascer e tempo para morrer. Tempo para chorar e tempo para rir. Tempo para gemer e tempo para dançar” (Ecl, 3, 2). (19/11/2025)

quarta-feira, novembro 12, 2025

AINDA SABE BEM OUVIR A SUA VOZ...

Lembrei-o quando, no mosteiro de Arouca, participava na ‘Missa de 7.º Dia‘do amigo P. António Brito Peres. E não foi por acaso. Por ambos dei graças. Era o ‘Dia de Todos-os-Santos’. - ”Santificai, Senhor, a Vossa Igreja.” (Oração dos Fiéis) “O livro da minha vida é o relato de um caminho de esperança que não posso imaginar separado da minha família, da minha gente Uma autobiografia é mais o nosso saco de viagem.” Assim começa a Introdução do livro ‘Esperança’ do Papa Francisco (pág.9) O ‘7Margens’, aquando da sua publicação, relevou o capítulo 21 (pág. 281) – ‘O escândalo da paz’ – em que o Papa dá conta dos seus esforços e dos seus contactos com Moscovo e Kiev, para acabar com “a Guerra (que) atingiu o coração da Europa e varreu as últimas ilusões acerca o ‘fim da história’ que haviam acompanhado a queda do Muro de Berlim” (pág. 282) Já o Jornal de Notícias (19/1/2025) valorizou peripécias que falam das suas ‘Traquinices de criança’ – espiar uma viúva e imitar os filmes; dos ‘Imprevistos’ – Cozinheiro aos 12 anos; dos ‘Namoros’ – Atração por três raparigas; das ‘Pequenas coisas’ – Saudades de comer pizza. Eu, porém, quero realçar a sua condição de filho e neto de imigrantes. Não é por acaso que este tema enche o primeiro capítulo que é precedido pelo ‘Prólogo’ (pág. 11) onde o Papa, com belo recorte literário, narra o naufrágio do ‘navio conhecido por ‘balaina’ (bailarina), com ‘mais de 1 200 passageiro, predominantemente migrantes piemonteses, lígures e venezianos’, quando ‘rumava às costas do Brasil, na direção de Porto Seguro”. E termina dizendo: “Os meus avós e o seu único filho, Mário, que viria a ser o meu pai, haviam comprado o bilhete para aquela longa travessia, para aquele navio que zarpou do porto de Génova a 11 de outubro de 1929, com destino a Buenos Aires. Mas não o apanharam. Embora tivessem tentado, não tinham conseguido vender a tempo aquilo que possuíam. No final, contra sua vontade, os Bergoglio foram obrigados a trocar o bilhete, a adiar a partida para a Argentina. Por isso, estou aqui agora. Não imaginam quantas vezes me encontrei a agradecer à Providência Divina”. O capítulo 1 (pág. 17) começa por informar: “Partiram, finalmente. “Uma multidão havia partilhado com eles aquela longa viagem de esperança. Teriam sido milhões e milhões a partir de Itália para ‘La Merica’ (…) Na direção de Buenos Aires, foram muito mais de duzentos mil, apenas nos últimos quatro anos que precederam aquele 1929.” Ontem como hoje… “Quem emigrava enfrentava geralmente todo o género de dificuldades e sacrifícios para embarcar. Quase sempre, depois de ter sido persuadidos por agentes e subagentes da imigração. Passavam nas aldeias durante as feiras, falavam da América como a nova ‘terra prometida’, uma terra de maravilhas. Pagos pela companhia de emigração por cada família que conseguiam convencer a abandonar as suas terras, estes agentes foram mesmo comparados, pela imprensa, a comerciantes de escravos.” E concretiza: “Porém, os muitos que o fizeram e desembarcaram em Buenos Aires, depararam-se depois com uma realidade áspera e dura, como uma bofetada, a do Hotel de Imigrantes, em que podiam permanecer não mais de cinco dias, onde o odor acre do ácido fénico não conseguia vencer o mau cheiro nauseante que vem do pavimento viscoso e sujo, um odor de humanidade amontoada, de miséria.” E assim se compreende a sua visita a Lampedusa: “Tinha de ir a Lampedusa para rezar, para realizar um gesto de proximidade, para exprimir a minha gratidão e o meu encorajamento aos voluntários e às populações daquela pequena realidade que sabia oferecer exemplos de solidariedade concretos. E, sobretudo, para despertar as nossas consciências e apelar às nossas responsabilidades.” (pág. 25) Deixou-nos um apelo de premente atualidade: “É preciso reagir com decisão a qualquer mentalidade de fechamento, de xenofobia, de recuo sobre si mesmo, e pior ainda, de ódio.” (pág. 57) E o Papa Leão XIV, na Praça de S. Pedro, durante Missa do Jubileu dedicado aos migrantes, renovou este mesmo apelo: “Irmãos, essas embarcações que esperam avistar um porto seguro onde se deter e esses olhos cheios de angústia e esperança que procuram uma terra firme onde chegar não podem, nem devem encontrar a frieza da indiferença ou o estigma da discriminação. - JN, 6/10/2025” (12/11/2025)

quarta-feira, novembro 05, 2025

MILHARES DE DOENTES MORREM SEM ACESSO AOS CUIDADOS PALIATIVOS

O nosso filho mais novo foi acompanhado, em casa, por uma equipa ambulatória de ‘Cuidados Paliativos’ do Hospital de S. João e acabou por falecer, nos ‘Serviços Paliativos’ do IPO do Porto, connosco a seu lado. Sabemos bem quanto isto o ajudou a viver a fase final da vida. Como nos sentimos gratos… Foi, pois, com pesar e indignação que li: “Estima-se que todos os anos cerca de 100 mil pessoas tenham, necessidade de cuidados paliativos, mas a resposta só chegará a cerca de metade. Muitos morrem sem nunca ter experimentado estes serviços.” (JN, 20/07/2025) Esta notícia dolorosa levou-me a recordar o livro “Morte a pedido – O que pensar da eutanásia”, da autoria de Walter Osswald, catedrático de Medicina da Universidade do Porto e nome consagrado da Bioética Começa por distinguir alguns conceitos correlacionados: - “Eutanásia é a morte de uma pessoa, provocada por outra, a pedido da que é morta.” - “Na ajuda ao suicídio, a pessoa que resolve suicidar-se não tem recursos materiais para o fazer (…) Dirige-se a outrem, em regra um profissional de saúde, pedindo-lhe que lhe faculte ou prescreva os meios necessários para a prática do ato letal.” - Doente terminal é aquele para quem os conhecimentos médicos atuais não preveem uma duração de vida superior a alguns meses (em regra fala-se de 6 meses), sendo irrecuperável o estado de saúde.” - Cuidados paliativos são cuidados prestados sobretudo a doentes terminais, em que se não visa, portanto, a cura, mas tão-somente o bem-estar e a qualidade de vida do paciente. (…) O objetivo é facultar ao doente uma fase final terminal de qualidade, sem sintomas penosos (dor, depressão, ansiedade, etc) sem apressar nem retardar a morte (que se procura serena, sem dor ou angústia, acompanhada por familiares).” Morte assistida – tem-se usado esta designação para abranger a eutanásia e a ajuda ao suicídio, mas é obviamente incorreta esta atribuição de significado. Morte assistida, por oposição à morte solitária, é aquela em que o ato de morrer tem assistência, isto é, há quem acompanhe o moribundo nesse momento único da sua existência. Essa companhia inclui a assistência médica prévia e a presença de pessoa(s) significativas. “(pág. 7 – 10) De seguida, para explicitar a confusão dos termos cita exemplos de que destaco: “Quando um conhecido médico afirmou ter praticado a eutanásia no seu próprio pai, por lhe ter retirado monitorização e terapia, trazendo-o do hospital para casa (…) – é obvio que não praticou eutanásia, apenas deixou morrer em paz. (…) Deixar morrer não é matar, é respeitar o decurso normal do processo vital, prestes a extinguir-se.” (pág. 17) Para evitar esta ‘confusão’, lembro a Diretiva Antecipada de Vontade (DAV) que veio dar a cada um de nós a possibilidade de, antecipadamente, dizer o que quer ‘quando se encontrar incapaz para expressar a sua vontade autonomamente’. Inclui: - ‘Não ser submetido a meios invasores de suporte artificial de funções vitais’; - “Não ser submetido a medidas de alimentação e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural da morte’; O Professor Osswald, “Em conclusão”, afirma que “a despenalização da eutanásia (…) resultaria em consequências calamitosas”: “Muitas pessoas inválidas, desejosas de poupar os seus cuidadores, muitos doentes receosos das suas progressivas incapacidades; alguns incentivados ou até coagidos por quem lucrasse (em trabalho, em espaço, em espécie) com o seu desaparecimento (…) - todos esses poderiam ver na eutanásia uma solução libertadora e legal. Claro que não cumpririam os critérios estritos, mas, como se viu noutros países, cedo se estenderia a noção de sofrimento insuportável a situação de desconforto psicológico, como as referidas.” (pág. 38) Ainda há dias, um nome mundialmente conhecido denunciou este efeito perverso “J.K. Rowling, a famosa autora do Harry Potter, no seu post de 12 de setembro passado, confessa que ‘acreditou na morte assistida, algo em que já não acredita’. Explica que tal mudança aconteceu, ‘em parte’, por ser casada com um médico que lhe ‘abriu os olhos para as possibilidades de coação sobre pessoas doentes e vulneráveis”. (7Margens, 29/9/2025) Especialmente, numa geração educada sob o signo do ‘complexo de culpa’… Concluindo… A nós, cumpre-nos dar voz a quem não a tem; aos órgãos de Soberania - Presidente da República, Assembleia da República, Governo e Tribunais - a obrigação proteger os mais frágeis. ( 5/11/2025)