O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, junho 25, 2025

PISAMOS TODOS O MESMO CHÃO

A inspiração para este texto surgiu dos discursos que a escritora Lídia Jorge, Presidente da Comissão Organizadora, e o professor Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, proferiram nas celebrações do ‘Dia de Portugal’, em Lagos, a terra onde nasceu o navegador Gil Eanes que dobrou o Cabo Bojador, e funcionou a ‘Casa da Guiné’ enquanto foi vivo o seu fundador, o Infante D. Henrique, natural do Porto. Recordei, então, as aulas de antropologia sobre a herança genética do povo português. Portugal, situado no extremo sudoeste da Europa, atlântico e mediterrânico, foi sempre terra de fixação e lugar de passagem. Terra de fixação, porque, situado no ‘fim da terra’ como os romanos chamaram – ainda hoje temos, na Galiza, o cabo Finisterra - os povos que vinham por terra, ao depararem-se com o mar, acabavam por se fixar. Assim, fizeram os Celtas, vindos do norte da Europa, que se misturaram com os Iberos, originando os Celtiberos; os Romanos, das bandas do Mediterrâneo, que conquistaram e ´romanizaram’ os povos locais; e os Germânicos (Suevos e Visigodos), do interior da Europa, que adotaram a língua – Latim; a religião – Cristianismo; e a cultura romana. A que se seguiram os Muçulmanos, originários do norte de África, que aqui permaneceram durante mais de cinco séculos (VIII –XIII). Lugar de passagem, porque situado entre o Mar Mediterrâneo e o Mar do Norte, os povos que viviam do comércio de longa distância, num tempo de navegação de cabotagem, tinham obrigatoriamente de aportar nas nossas terras quando viajavam entre estes dois polos comerciais. Assim aconteceu com Fenícios, Gregos e Cartagineses. E mais tarde, quando Lisboa se tornou o centro do comércio com a Índia, para aqui vieram comerciantes da Flandres e Inglaterra, e das repúblicas italianas de Veneza, Génova e Florença. O mesmo aconteceu com as Cruzadas que, rumando do norte da Europa para a Terra Santa, por aqui passavam e aqui deixavam muitos dos seus cruzados, como os que ajudaram D. Afonso Henriques na conquista de Lisboa. E não podemos esquecer os piratas normandos e viquingues, no norte da Europa; e os mouros, do norte de África que, ao longo dos tempos acossaram as terras do litoral. Pouco a pouco, deu-se uma miscigenação dos povos mediterrânicos – de menor estatura, tez morena, olhos castanhos, cabelo escuro – com os povos nórdicos, de maior estatura, tez clara, cabelo louro, alhos azúis. Para já não falar doutros povos com especial relevo para os judeus que aqui habitam desde tempos imemoriais e os escravos africanos que, a partir do século XV, trouxemos para a nossa terra. E muitos, muitos outros… Entre nós, não há ninguém de ‘raça pura’… Somos uma mistura genética. Foi, pois, com notória satisfação que ouvi o senhor Presidente da República afirmar: “Desde as raízes lusitanos, lioneses, burgonheses, gauleses, saxões, os mais antigos aliados de Portugal. Recordar esses e muitos mais que de nós fizeram uma mistura, em que não há quem possa dizer que é mais puro e mais português do que qualquer outro.”. Já, antes a escritora Lídia Jorge, num discurso de fino recorte literário, havia dito: “Consta que em pleno século XVII, 10% da população portuguesa teria origem africana. Essa população não nos tinha invadido. Os portugueses os tinham trazido arrastados até aqui. E nos miscigenamos. O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro. E a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou. Filhos do pirata e do que foi roubado. Mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas. A consciência dessa aventura antropológica talvez mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos nos dias de hoje, um pouco por toda a parte.” Assim o desejo e espero… . Diferentes, pisamos todos o mesmo chão… (25/6/2025)

quinta-feira, junho 19, 2025

EIS UM VERDADEIRO ISRAELITA, NO QUAL NÃO HÁ FALSIDADE

s É como colega que falo. A nossa amizade nasceu na década de cinquenta, no seminário de Vilar. Aproximou-nos o facto de ele ser natural de Moldes, Arouca, bem perto das minas de volfrâmio de ‘Rio de Frades’ onde foi mineiro o tio Adão Carriço que me deliciou a infância com histórias de lobos que, então, abundavam nessas terras, para mim, longínquas e misteriosas. Um parêntesis - É curioso que, ainda em agosto de 1961, quando, com o Teixeira Coelho, organizámos - apoiados por Monsenhor Miguel Sampaio, reitor do Seminário Maior, e acompanhados pelos nossos professores, Dr. Ângelo e Dr. Armindo - uma colónia de férias para meninos do bairro da Sé, em Albergaria, então, das Cabras, hoje, da Serra, apareceram-nos uns pastores a oferecer-nos dois lobos bem pequeninos que tinham encurralado e apanhado num bueiro do caminho. Terminado o Curso do Seminário, a vida afastou-nos, mas, como gosto de dizer, por mais longe que ande o amigo, nunca está para além das fronteiras do coração. Reaproximou-nos a realização, a partir de 2010, do ‘Dia da Voz Portucalense’ na Sé, quando, em nome da Fundação Voz Portucalense, lhe solicitava, na sua ‘qualidade de Presidente do Cabido da Catedral”, a necessária autorização. Sempre nos respondeu pelo seu próprio punho, em papel timbrado do Cabido, como aconteceu em 27 /12/2012: “Agradeço a comunicação de 17 de Dezembro e mais comunico que tenho todo o gosto em colaborar em nome do Cabido. Arnaldo de Pinho” E, ainda, o Coro Gregoriano do Porto que, em 2015, a seu convite, como ‘Juiz da Real Irmandade da Rainha Santa Mafalda’, iniciou as comemorações dos seus ‘20 Anos’ com um concerto no Mosteiro de Arouca. Segui bem de perto os seus últimos dias quando já estava internado na Casa de Saúde da Boavista, mas a primeira notícia da sua morte chegou-me bem cedo, no dia 15 de maio, - um mês é passado - pelo facebook, onde um intelectual, que se diz agnóstico, escreveu “Faleceu um grande amigo. Era da minha idade. Não sei dizer mais nada. Vão-se os amigos e sentimo-nos mais sós. Os amigos fazem parte da família e da família mais próxima.” O dia do seu funeral coincidiu com a reunião do ‘Curso de Seminário 1951-1963’. Não pudemos participar nas suas exéquias na Catedral, mas, na Eucaristia, presidida pelo P. Avelino e concelebrada pelos padres Loureiro, Damião e Meireles, demos graças a Deus por ele e cantámos o ‘Requiem’, em gregoriano. Porque sou muito pequenino para falar da sua grandeza, como teólogo e homem de cultura, socorro-me da evocação que Nuno Higino, professor e editor, escreveu em 7Margens (19/05/25) sob o título ‘Arnaldo de Pinho, um pensador emancipado’, de que, com vénia, me faço eco: “Arnaldo de Pinho (1942–2025) ocupou um lugar único na teologia portuguesa pós-conciliar. Pensador de fronteiras e nas fronteiras, cultivou uma teologia do diálogo – entre fé e cultura, entre tradição e modernidade, entre razão e estética – marcada por uma abertura invulgar à complexidade do mundo. O seu percurso foi guiado por uma fidelidade crítica à Igreja, mas também por uma liberdade intelectual indagadora, nunca submissa à repetição doutrinal. (…) A teologia de Arnaldo de Pinho não se desenvolveu em moldes dogmáticos, nem se limitou a repetir fórmulas. Antes, procurou ler os sinais do tempo e inscrever neles a gramática do Evangelho. Esta abordagem, que se pode designar como teologia da cultura, faz da própria cultura um lugar hermenêutico da fé: não apenas contexto, mas espaço de revelação, interrogação e fecundação mútua. (…) Arnaldo de Pinho passou o seu ministério a construir pontes: entre o Evangelho e a modernidade, entre a tradição cristã e os questionamentos do mundo contemporâneo, entre o local e o universal..” Para mim, sempre foi o colega, de bom coração, com um humor subtil, servido por um sorriso sem farsa e uma piada sempre oportuna; o amigo que me faz lembrar o que Jesus disse de Natanael: ”Eis um verdadeiro israelita, no qual não há falsidade - Jo 1, 47” (18/6/2025)).

quarta-feira, junho 11, 2025

VAMOS CONHECER PORTUGAL - II - VALE DO TUA

Quando o verão se aproxima… “Moda do Vale do Tua esgota caminhadas em poucos dias. O vale do rio Tua tem vindo a ser um caso sério de popularidade no contexto turístico de Trás-os-Montes e Alto Douro.” (JN, 10/01/2025) Este encantamento fez-me recordar a visita que, há mais de vinte anos, fiz a Pombal de Ansiães e às Termas de S. Lourenço, de que dei notícia no jornal local. Na sede da freguesia, comecei por dar relevo à “padaria onde o senhor Sebastião afavelmente nos acolheu e pudemos consolar-nos com o cheiro apetitoso do pão fresco, aquecer-nos com o lume que saía do forno e testemunhar a higiene e o carinho com que a massa era tratada. E soubemos que muito deste pão iria ser distribuído, também, pelas aldeias vizinhas, chegando mesmo a Alijó”. Logo a seguir, demorei-me no ‘Lagar de Azeite’ onde fomos cordialmente recebidos pelo senhor Manuel: “Aí, vimos o nascer de uma dádiva da natureza que o homem soube transformar e aproveitar. Como era belo aquele fio de líquido dourado que escorria como produto final de um longo e penoso percurso cujo início nos transportava para os lindos olivais onde assisti ao varejar da azeitona. Terra farta em azeite que, para além de satisfazer as suas necessidades, ainda produz um excedente considerável para vender fora de portas!”. A conversa com os seus habitantes levou-me a escrever: “E se tiverem a sorte de encontrar pessoas como o senhor António do Pinhal, na frescura dos seus 80 anos, no aprumo do seu porte, no vigor da sua palavra, na malícia dos seus ditos, no bucolismo do seu canto e no requinte do seu bigode… então, nunca mais esquecerão”. Mas o êxtase estava reservado para o final que assim descrevi: “Depois foi a descida até às termas de S. Lourenço, o proto-mártir, orago da freguesia e cuja imagem, com a grelha (instrumento do seu martírio) encima o pórtico da igreja paroquial. E ao chegar a este local paradisíaco, sentimentos contraditórios se entrechocaram: ao deslumbramento sucedeu o desalento e a este sobrepôs-se a esperança. Deslumbramento, porque a vista alonga-se pelas quebradas dos montes, povoados de oliveiras, e perde-se, lá no fundo, no espumar embravecido das águas nos rápidos do Tua; os ouvidos deliciam-se com a suavidade do chilrear dos pássaros e a musicalidade que sobe lá das profundezas dos desfiladeiros; o olfacto inebria-se com o perfume que as plantas exalam e as águas quentes que brotam da fonte acariciam-nos e amaciam-nos a pele. É o êxtase!... Deus esmerou-se! Desalento, pelo abandono e pela desolação, porque o homem do presente não soube aproveitar esta dádiva nem merecer o trabalho dos seus antepassados. Estes construíram residências e balneários e pensões e uma linha de caminho de ferro que lhe corre aos pés. E vinham gentes de Lisboa, do Porto e até as pessoas das redondezas aproveitavam para descansarem após os trabalhos árduos das vindimas e para curarem os seus males de pele e de ossos. Esperança, porque sei que a geração presente não quererá ficar marcada pelo ferrete da ingratidão frente a Deus e aos seus antepassados, nem desmerecer das gerações futuras. (…) E, sonhando, vejo (os turistas) a desvendarem os mistérios da serra.” (O pombal, 24 /01/2002). Este sonho começou a ganhar corpo, em 2013, com a criação do Parque Natural Regional do Vale do Tua que engloba os municípios de Alijó, Murça, Mirandela, Vila Flor e Carrazeda de Ansiães, ‘uma região eminentemente rural, onde o património cultural e natural são praticamente indissociáveis.’ Muita coisa mudou, mas continuam a abundar motivos para as pessoas que gostam ‘de biodiversidade, natureza, gastronomia, tradições e cultura’ e queiram sentir que vale a pena fazer parte deste processo, como disse o diretor do Parque, António Marques. Para conhecer ‘um mundo que já não existe’, nada melhor que uma visita ao ‘Museu da Memória Rural’ em Vilarinho da Castanheira, e ao ‘Centro Interpretativo do Vale do Tua’, junto da estação do caminho de ferro, na Foz do Tua onde existe um restaurante, com um nome bem típico, que sabe bem visitar… (11/06/2025

terça-feira, junho 03, 2025

TUDO ME FAZ LEMBRAR MINHA MÃE...

E, desta vez, foi a Encíclica Amou-nos (Dilexit nos), do Papa Francisco. Esconde-se no mais recôndito da minha infância, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus que, com o ‘Divino Espírito Santo’ e Nossa Senhora, formava o tripé da prática devocional em que fui educado. Minha mãe era zeladora do ‘Sagrado Coração de Jesus’ e, todos os sábados, ia enfeitar o ‘Seu’ altar na igreja da minha terra. E eu, num domingo de maio, sempre acompanhado pela gancheta e a roda, ia receber a quota anual dos ‘Associados’. Ainda sinto o cheiro das flores que bordejavam os caminhos e o chilrear dos passarinhos por entre os arvoredos… E nunca faltava à ‘primeira sexta-feira’ do mês. No dia anterior, após a escola, íamos ao ‘confesso’ e, às vezes, até combinámos os pecados a confessar… E, na sexta-feira, às sete da manhã – no inverno, ainda era escuro e o frio enregelava as mãos – já estávamos na igreja para comungar. Recordo a vez que mais me custou. Na quinta feira, realizou-se, em casa do meu tio Nogueira, a espadelada do linho. E, como de costume, no fim, não faltaram os petiscos onde abundavam os ‘bolinhos de bacalhau’ que, ontem como hoje, me deliciam. Mas… nem os pude cheirar porque, quando o serão terminou, já passava da meia noite. E, para comungar, tinha de estar em jejum desde a meia noite anterior. Minha mãe trouxe-me mais cedo para casa e guardou-me uns ‘bolinhos’ para o dia seguinte… Mãe é mãe… Em 1957, no seminário de Vilar, a Academia Beato Nun’Álvares fundou a ‘Associação do Sagrado Coração de Jesus’, incentivada pelo diretor espiritual, P. Manuel Vieira Pinto que nos dizia: ‘a Igreja precisa de padres de coração quente e não de testa fria’. Ainda me vejo a receber as insígnias de zelador, na capela do Seminário. É, pois, com redobrada emoção que, no início do ‘Mês do Sagrado Coração de Jesus’, partilho convosco alguns números da Encíclica ‘Amou-nos - Sobre o Amor Humano e Divino do Coração de Jesus’, publicada em Roma, pelo Papa Francisco, a 24 de outubro de 2024, que me fez sentir a presença de duas pessoas de ‘coração quente’ a quem devo muito do que sou. - A veneração da sua imagem . “52. Convém notar que a imagem de Cristo com o seu coração, ainda que de maneira nenhuma possa ser objeto de adoração, não é uma imagem qualquer, entre muitas outras que poderíamos escolher.” .”53. Há uma experiência humana universal que torna esta imagem única. Pois não há dúvida que, ao longo da história e em várias partes do mundo, o coração se tornou um símbolo da intimidade mais pessoal e também do afeto, emoções e capacidade de amar.” .”55. A imagem do coração deve remeter-nos para a totalidade de Jesus Cristo, no seu centro unificador, e, a partir desse, simultaneamente, deve levar-nos a contemplar Cristo em toda a sua beleza e riqueza da sua humanidade e da sua divindade.” . “58. Não devemos esquecer que esta imagem do coração nos fala de carne humana, da terra e, por isso, nos fala também de Deus que quis entrar na nossa condição histórica, fazer-se história e partilhar o nosso caminho terreno.” - Em comunhão de serviço . “212. Não se deve pensar nesta missão de comunicar Cristo como se fosse algo apenas entre mim e Ele. Ela é vivida em comunhão com a própria comunidade.” . “213. É um amor que se torna serviço comunitário. Não me canso de recordar que Jesus disse com grande clareza: ‘Sempre que o fizeste a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizeste’ (Mt 25,49). Ele propõe-te que O encontres também aí, em cada irmão e em cada irmã, especialmente, nos mais pobres, desprezados e abandonados da sociedade. Que lindo encontro!” E minha mãe encontrava-O, como escreveu um vizinho que a conheceu muito bem: “Ti Maria Rosa Tanoeiro, a pessoa mais bondosa que eu conheci até hoje”. Ainda há dias, me surpreendi quando um amigo de infância, hoje bem na vida, mas que, em criança, passou fome - era o tempo da Guerra, com o desemprego, o racionamento e mercado negro alimentar - me confessava: “Tua mãe, quando eu ia a vossa casa, antes de me dar um bom naco de broa, sempre me perguntava: “Não será que tu queres um bocado do nosso pão?” Delicada, mesmo nas dádivas… Em ‘Comunhão’ com ela e convosco, repito: Sagrado Coração de Jesus, que tanto nos amais…(4/6/2025)