O Tanoeiro da Ribeira

terça-feira, fevereiro 25, 2025

'DESTRUÍDA PELA SUA DESCOBERTA SALVADORA'

Em 2013, fizemos uma viagem à Polónia para conhecer Wadowiche, a terra natal do Papa João Paulo II, e Cracóvia, a cidade de que foi arcebispo. Aterrámos em Varsóvia de que guardo três imagens: o Gueto de Varsóvia, onde morreram milhares de Judeus; o monumento a Chopin, o grande compositor romântico, daí natural; e a casa em que nasceu a primeira mulher a ganhar um Prémio Nobel e a única a ganhá-lo duas vezes em dois campos científicos diferentes: Física, em 1903, e Química, em 1911. Lembrei-me desta viagem, ao ler a biografia ‘Marie Curie Na Noite da Ciência (1867 – 1934)”, a segunda do livro ‘Vinte Grandes Mulheres do Século XX’, de Inês Pedrosa que me ajudou a responder à pergunta: Quem é esta polaca, chamada Marie Sklodowska que, por casamento com Pierre Curie - cientista que, com ela, recebeu o Prémio Nobel da Física – se fez também francesa e ficou conhecida como Madame Curie? - Uma vida difícil . Na infância - “No ano em que Maria veio ao mundo (1867), a Polónia russa perdeu até o nome que tinha: chamava-se agora ‘território do Vístula’. A língua russa foi imposta, e os polacos – entre os quais seu pai – foram progressivamente substituídos por russos em todos os cargos públicos.” (…) O jugo russo foi roubando tudo à família: o pai começou por perder o lugar e a casa de professor oficial e acabou por ter de transformar o minúsculo casinhoto da família num pensionato de estudantes: aos seis anos, Maria dormia na sala e tinha de ter a cama feita às seis da manhã.” . Na adolescência - Quando trabalhava como perceptora duma família rica, escreve a uma prima:” Não desejo nem ao meu pior inimigo que viva num inferno destes”. (…) . Casada - “Pierre e Marie viviam mal, quase miseravelmente”. . Viúva, devido a um relacionamento amoroso com um cientista casado, “a multidão moralista cercava-lhe as janelas, atirava-lhe pedras aos vidros, espumante de raiva: - Fora com a estrangeira!” (…) A Sorbonne incendiava-se: queriam retirar-lhe a cátedra, tentavam forçá-la a ir para a Polónia”. - Um coração bom e humilde … . “Aos dezassete anos, decidiu empregar-se para pagar os estudos da irmã Bronia, então com vinte. A irmã ainda hesitou em sacrificar desta forma Maria, mas ela foi taxativa: ‘Sejamos eficazes. Eu sou mais nova, posso esperar cinco anos.” (…) . “Vivia com grandes dificuldades materiais – chegou mesmo a não ter dinheiro para os selos das cartas que gostaria de escrever. Aguentou tudo por amor aos irmãos: ‘É preciso que vocês os dois, pelo menos, orientem a vossa vida conforme os vossos dons (…) Quanto mais tenho pena de mim mesma, mais esperança tenho em vocês”. - Solidária e benemérita… . “Quando recebeu o primeiro pagamento (por um trabalho que lhe encomendaram em 1897) foi imediatamente reembolsar a Fundação Alexandrovitch de Varsóvia que lhe concedera a bolsa – reembolso que não estava previsto, mas que ela considerava um elementar dever de solidariedade social para permitir o aumento do número de bolseiros.” . Quando, em 1914, rebentou o Primeira Guerra Mundial, Marie não só doou à França o que lhe restava do dinheiro dos Prémios, como, com a ajuda da filha Irène, então com dezassete anos (viria a ser a segunda mulher a receber um Prémio Nobel), organizou um serviço público de aparelhos de Raios X móveis, em ambulâncias francesas, que beneficiou um milhão de soldados feridos”. - Generosa e desprendida: “Marie recusou uma patente para a técnica de extracção e purificação do rádio que inventara, alegando que o rádio pertencia a todos os que quisessem usá-lo. Ou seja, recusou a fortuna que outros construiriam sobre a sua descoberta”. - Vítima das suas descobertas: “Porque se sentiriam os Curie tão cansados, mesmo durante as férias? (…) Não imaginavam que começavam a estar afectados pela radiação das substâncias activas que manipulavam. (…) Morrera a 5 de Julho de 1934, destruída pelas sua descoberta salvadora.” - Uma pioneira: “Madame Curie criara, mais do que uma revolução na ciência, uma nova linhagem de mulheres: as que não abdicam da inteligência criadora só por serem mulheres.” (26/2/2025)

quarta-feira, fevereiro 19, 2025

SALPICOS DE MEMÓRIA

Na passada sexta-feira, fez 61 anos que D. Florentino criou a Obra Diocesana de Promoção Social na Cidade do Porto. E, logo em 17 de outubro, ‘A Voz do Pastor’ escrevia: “A Obra Diocesana traz consigo a marca da sua época, os ‘anos sessenta’ das grandes utopias, em tempos de Vaticano II. É uma obra de e da, mas não para a Igreja; uma obra eclesial, mas não eclesiástica e, muito menos, clerical. Ao serviço de todos, sem distinção de género, idade, cultura, classe ou credo, é de leigos e dirigida por leigos”. Desde a origem, o seu nome incorpora duas notas que a caraterizam: ‘Obra Diocesana’ e ‘Promoção Social’. E porque ‘de leigos e dirigida por leigos’, os seus estatutos, aprovados em 17 de abril de 1967, referiram apenas a presença dum ‘sacerdote responsável’ como intermediário entre a Direção e o seu Patrono. No exercício dessa missão, reuni, semanalmente, com D. Florentino (1964 >1969) e D. António (1969 >1975). Esses encontros levaram-me a escrever, nas ‘Bodas de Ouro’ da Obra: “Dois Bispos, duas personalidades, dois carismas, em dois momentos diferentes da Obra. Um fundou-a, outro consolidou-a. Um gerou-a e embalou nos tempos da sua meninice, outro amparou-a nos momentos conturbados da adolescência (Nos Alvores da Obra Diocesana). Desse convívio, assíduo e longo, retenho algumas memórias: Com D. Florentino de Andrade e Silva. . Quando foi necessário estabelecer o ordenado para a assistente social D. Maria Augusta Negreiros, a primeira funcionária – até aí tudo funcionou em regime de voluntariado - concordámos que a Obra deveria pugnar para que os seus trabalhadores estivessem imbuídos pelo espírito de apostolado, mas não poderíamos praticar a caridade à custa da justiça. Era o ‘seu ganha-pão’. E não era com o ‘espirito de apostolado’ que os funcionários pagavam as suas despesas. . Um dia, alguém, embora reconhecendo a validade do seu trabalho, disse-lhe que a Obra não aparecia como sendo da Igreja. Conversámos e ficou claro que a Obra gozava de liberdade para trabalhar em qualquer bairro da cidade sem dependência da respetiva paróquia. Havia que harmonizar trabalhos que se completavam como duas faces da mesma Igreja, mas sem dependências nem clericalismos. . Nos finais de 1966, convidei-o para celebrar a ‘Missa de Passagem de Ano’ na capela do Cerco do Porto, há pouco inaugurada e disse-lhe: -Senhor Bispo, a minha missão é vicarial. Tem aqui o horário das missas dominicais. Quando puder, apareça. Ele aceitou o convite e o repto. Várias vezes aconteceu que, estando eu já paramentado, me vieram dizer: - Chegou o Senhor Bispo. E era tanta a sua simplicidade que as crianças lhe chamavam ‘Senhor Padre Bispo’. Com D. António Ferreira Gomes . Em 1970, em seu nome, fui convidar o Dr. Sá Carneiro para a direção da Obra. - ‘Não posso’, respondeu e explicou: - ‘Vou a apresentar na Assembleia Nacional um pedido de revisão da Concordata que permita o divórcio civil a pessoas casadas catolicamente. Isso vai levantar contra mim a hierarquia; não quero comprometer o nome de D. António’. Ao despedir-me, ficou assente que aceitaria o convite, se o Senhor Bispo, sabendo da sua intenção, insistisse no pedido Dirigi-me imediatamente à Casa Episcopal. D. António respondeu-me: - Diga ao Dr. Sá Carneiro que eu assumo a responsabilidade pelas consequências. E assim o Dr. Sá Carneiro fez parte da Direção da Obra desde 1971 até 1975. . No dia do funeral de Salazar, almocei, por coincidência, com D. António. No final do almoço, ao dirigirmo-nos para a sala de audiência, passámos numa sala onde uma televisão mostrava o caixão do ditador a ‘descer à cova’. D. António, surpreendido, parou; benzeu-se; estático, manteve-se em silêncio; pareceu-me balbuciar uma oração. No fim, benzeu-se e, em surdina, disse: “Este já não faz mais mal a ninguém. . Num momento de grande tensão entre a Obra e o Governo, D. António falava-me dos bispos do Porto que pugnaram pela liberdade da Igreja face ao poder político, com grande destaque para o seu guia, D. António Barroso. Quando lhe perguntei a razão para esta independência, em contraste como os de Lisboa, respondeu-me de modo muito simples. - É que nós não casamos as filhas dos Senhores Ministros nem lhes batizamos os netos… Em conclusão… Carismas diferentes, mas, fruto dum único Espírito, o mesmo amor à Igreja. (19/2/2025)

domingo, fevereiro 16, 2025

O MEU ATLAS ESCOLAR E O DR. MÁRIO SOARES

O livro escolar mais antigo que guardo como relíquia preciosa e que, ainda hoje consulto, é “O Novo Atlas Escolar Português” em que, na primeira página, escrevi: ‘Pertence ao aluno – 3.º Ano - João Alves Dias - Seminário S. Coração de Jesus (Trancoso) – 1953’. A ele devo a paixão pela geografia e pela cartografia. Lembrei-me dele quando, no passado dia 6 de dezembro, a Assembleia da República comemorava os 100 anos de nascimento de Mário Soares. E a razão desta evocação esteve numa entrevista, “originalmente publicada no Público” (22/12/1996) que, nesse dia, o ‘7Margens’ incluiu num texto com o título Mário Soares: “Sou talvez um místico que se desconhece”. Partilho convosco algumas das suas falas P. - O facto de o seu pai ser católico teve alguma influência na sua opção perante a religião? R. - O meu falecido Pai foi sempre e é, ainda hoje, para mim, uma grande referência moral e política. Era um católico sincero, muito piedoso, um espírito religioso, que foi padre e depois casou, catolicamente, com a minha Mãe, no fim da vida, muito preocupado com a salvação, mas de uma enorme tolerância e abertura de espírito. Nunca me impôs qualquer comportamento religioso, deixando-me inteiramente livre nas minhas opções. P. - Quando ele começou a perceber que o filho não tinha fé, não entrou em conflito? R. - Quando percebeu que eu não tinha fé, respeitou sempre a minha posição, designadamente em matéria de casamento ou de não baptismo religioso dos meus filhos. O problema religioso, após a adolescência, foi uma questão que, para mim, deixou de se pôr, entre nós, e que em nada afectou as nossas relações de enorme carinho mútuo. P. - E a conversão da sua esposa ao catolicismo, depois do acidente do seu filho: provocou algum efeito na sua vida pessoal? R. - São conhecidas as condições dramáticas em que o problema da fé se lhe impôs. Não somos casados pela Igreja. Sempre foi muito discreta nesse particular. Achamos ambos que se trata de uma opção íntima, da esfera individual própria, de cada um de nós, que sabemos não nos é comum e, por isso mesmo, não é motivo de discussão ou sequer de conversa. Vivemo-la no respeito mútuo e na tolerância recíproca. Bem como os meus dois filhos. P. - A “fé no homem” é uma afirmação que costuma fazer. Mas também tem dito que não sabe “se existe Deus”. São coisas diferentes? Como define a sua posição religiosa actual? R. - Talvez seja, como disse uma vez Jean Guitton, “um místico que se desconhece”. Não sei… Em qualquer caso, acredito no homem e tenho fé no progresso da condição humana e no destino do homem. Mas não acredito em Deus, ou pelo menos num Deus antropomórfico, preocupado com os nossos problemas humanos, nem, muito menos, na imortalidade da alma. A minha posição religiosa actual? Considero-me, como sempre me considerei, agnóstico. Não tenho certezas sobre coisa nenhuma (só dúvidas e interrogações) nem, menos ainda, certezas negativas, como acaso terei tido nos tempos em que estive mais próximo do marxismo. P. - Quando pensa na morte, qual é o seu sentimento mais profundo? R. - O mistério da morte – como o da vida – fascina-me e perturba-me. Nos últimos anos, como é natural, são mistérios que se insinuam com mais frequência nas minhas reflexões. Quanto à vida eterna, infelizmente, não acredito nela. Como já lhe disse. Sou demasiado racionalista para acreditar. Quanto à morte? Eis uma certeza que todos temos – talvez a única indubitável – e de que não devemos fazer abstracção, sobretudo nos momentos mais eufóricos ou solares. Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris… É triste, mas é assim. “ Chegados aqui, o meu leitor interrogar-se-á: Que tem esta entrevista a ver com o dito Atlas Escolar? E eu explico: Mário Soares fala, com muito carinho, de seu pai. Ora o dito “Atlas” – o melhor de todos, disse o professor de Geografia, P. Delfim, a meu pai - tem como autor ‘João Soares – Antigo Professor do Instituto dos Pupilos do Exército’. Ou seja, o pai de Mário Soares que, segundo a sua biografia, “foi autor do ‘Novo Atlas Escolar Português, com quatro edições em 1943”. O meu Atlas é da 4.ª edição, atualizada, de Agosto de 1951. Quem diria que o autor do meu ‘Atlas’ era o pai daquele que viria a ser o político que sempre lutou pela Liberdade: antes do 25 de Abril, contra a direita fascista de Salazar; antes do 25 de Novembro, contra a esquerda comunista de Cunhal… A minha gratidão. (12/2/2025)

DIÁLOGO NA AÇÃO

“A unidade dos cristãos poderia ser cumprida se tivermos um objetivo ainda mais amplo e ainda mais importante, que é a unidade escatológica de todas as pessoas. Não é suficiente pensarmos apenas na unidade entre os cristãos. A unidade dos cristãos deve ser o instrumento da reconciliação de toda a Humanidade, que é muito importante no nosso tempo, quando o mundo está dividido.” Estas palavras do teólogo checo, Tomás Halik, em entrevista ao ‘7Matrgens’ (30/11/2024), fizeram-me vir à mente uma fotografia exposta no Museu Aristides de Sousa Mendes. Em reportagem, no facebook, sobre a visita que, com 35 amigos, fiz, no passado dia 29 de outubro, a esse Museu, assim legendei essa fotografia: “Aristides com o Rabino Kruger, dois amigos, e duas religiões: um judeu e um católico. O diálogo na ação”. Aristides Sousa Mendes assumia-se claramente como católico. Prova-o o monumento a Cristo-Rei que mandou construir ao cimo da sua ‘Quinta do Passal’ como informa uma placa na base desse monumento: “Monumento a Cristo Rei – mandado construir em 1933 pelo ilustre cabanense Doutor ‘Aristides de Sousa Mendes’, diplomata que ao exercer as funções de Cônsul – Geral em Bordéus – 1940 – salvou milhares de vidas do holocausto nazi da II Guerra Mundial” A sua desobediência às ordens de Salazar foi uma ‘loucura’ que o levou à miséria e acarretou a desgraça para os seus quinze filhos. Com razão ele se interrogava: “Que mundo é este em que é preciso ser louco para fazer o que é certo?” E por que o fez? - podemos perguntar-nos. Testemunho claro da sua motivação são as suas palavras, em 17 de junho de 1940, “Mesmo que me destituam, só posso agir como cristão, como me dita a minha consciência; se estou a desobedecer a ordens, prefiro estar com Deus contra os homens do que com os homens contra Deus”. E o Papa Francisco, em 17 de junho de 2020, reconheceu-o, ao criar o ‘Dia da Consciência, ‘inspirado no testemunho do diplomata português Aristides de Sousa Mendes, que há 80 anos decidiu seguir a voz da consciência. É um dia que marcará a história da humanidade”. A sua longa carreira diplomática, iniciada em 1910 na Guiana Britânica, passou por Espanha, Tanzânia, Brasil, Estados Unidos, Bélgica e França. Entre 1928 e 1938 foi Cônsul Geral em Antuérpia onde era rabino Jacob Krugel que havia fugido da Polónia ocupada pelo exército de Hitler. Nos finais de 1939, já Cônsul-Geral em Bordéus, emitiu alguns vistos de entrada em Portugal, desobedecendo às instruções do seu governo. Entre as pessoas que ajudou, contava-se o rabino Kruger. Em 16 de junho de 1940, recebe-o em sua casa e promete-lhe que iria fazer tudo o que pudesse para convencer o Estado português a conceder visto aos milhares e milhares de refugiados que definhavam à porta dos consulados. Na manhã do dia 17, o Governo de Salazar nega-lhe a solicitada autorização. Contrariando estas ordens, Aristides informa o rabino que iria passar vistos de entrada em Portugal: “A partir de agora, darei vistos a toda a gente, já não há nacionalidades, raça ou religião”. E o que fez o rabino Kruger, face a esta inesperada atitude? Aproveitou o visto que lhe havia sido concedido e partiu imediatamente para Portugal fugindo à morte que o esperava? Não. Pelo contrário, permaneceu em Bordéus a colaborar com Aristides na passagem dos vistos. E, entre os dias 17 e 19 de junho, ajudou a libertar da morte dezenas de milhares de pessoas. E assim, dois homens, sem confrontarem princípios religiosos, deram as mãos numa ação conjunta em favor da Humanidade. Não perderam tempo a discutir razões. Dialogaram na ação. Que a oração suscite, nas igrejas locais, iniciativas que congreguem as diversas confissões religiosas em serviços concretos de apoio à comunidade. E o ‘sínodo’ (caminhar juntos) acontecerá na cumplicidade do agir. E os ‘crentes’, congregados na ação, serão fatores de união numa sociedade cada vez mais polarizada, sementes de paz num mundo cada vez mais conflituoso. (5/2/2025)