SALPICOS DE MEMÓRIA
Na passada sexta-feira, fez 61 anos que D. Florentino criou a Obra Diocesana de Promoção Social na Cidade do Porto. E, logo em 17 de outubro, ‘A Voz do Pastor’ escrevia:
“A Obra Diocesana traz consigo a marca da sua época, os ‘anos sessenta’ das grandes utopias, em tempos de Vaticano II. É uma obra de e da, mas não para a Igreja; uma obra eclesial, mas não eclesiástica e, muito menos, clerical. Ao serviço de todos, sem distinção de género, idade, cultura, classe ou credo, é de leigos e dirigida por leigos”.
Desde a origem, o seu nome incorpora duas notas que a caraterizam: ‘Obra Diocesana’ e ‘Promoção Social’. E porque ‘de leigos e dirigida por leigos’, os seus estatutos, aprovados em 17 de abril de 1967, referiram apenas a presença dum ‘sacerdote responsável’ como intermediário entre a Direção e o seu Patrono.
No exercício dessa missão, reuni, semanalmente, com D. Florentino (1964 >1969) e D. António (1969 >1975).
Esses encontros levaram-me a escrever, nas ‘Bodas de Ouro’ da Obra:
“Dois Bispos, duas personalidades, dois carismas, em dois momentos diferentes da Obra. Um fundou-a, outro consolidou-a. Um gerou-a e embalou nos tempos da sua meninice, outro amparou-a nos momentos conturbados da adolescência (Nos Alvores da Obra Diocesana).
Desse convívio, assíduo e longo, retenho algumas memórias:
Com D. Florentino de Andrade e Silva.
. Quando foi necessário estabelecer o ordenado para a assistente social D. Maria Augusta Negreiros, a primeira funcionária – até aí tudo funcionou em regime de voluntariado - concordámos que a Obra deveria pugnar para que os seus trabalhadores estivessem imbuídos pelo espírito de apostolado, mas não poderíamos praticar a caridade à custa da justiça. Era o ‘seu ganha-pão’. E não era com o ‘espirito de apostolado’ que os funcionários pagavam as suas despesas.
. Um dia, alguém, embora reconhecendo a validade do seu trabalho, disse-lhe que a Obra não aparecia como sendo da Igreja. Conversámos e ficou claro que a Obra gozava de liberdade para trabalhar em qualquer bairro da cidade sem dependência da respetiva paróquia. Havia que harmonizar trabalhos que se completavam como duas faces da mesma Igreja, mas sem dependências nem clericalismos.
. Nos finais de 1966, convidei-o para celebrar a ‘Missa de Passagem de Ano’ na capela do Cerco do Porto, há pouco inaugurada e disse-lhe:
-Senhor Bispo, a minha missão é vicarial. Tem aqui o horário das missas dominicais. Quando puder, apareça.
Ele aceitou o convite e o repto. Várias vezes aconteceu que, estando eu já paramentado, me vieram dizer: - Chegou o Senhor Bispo. E era tanta a sua simplicidade que as crianças lhe chamavam ‘Senhor Padre Bispo’.
Com D. António Ferreira Gomes
. Em 1970, em seu nome, fui convidar o Dr. Sá Carneiro para a direção da Obra.
- ‘Não posso’, respondeu e explicou: - ‘Vou a apresentar na Assembleia Nacional um pedido de revisão da Concordata que permita o divórcio civil a pessoas casadas catolicamente. Isso vai levantar contra mim a hierarquia; não quero comprometer o nome de D. António’.
Ao despedir-me, ficou assente que aceitaria o convite, se o Senhor Bispo, sabendo da sua intenção, insistisse no pedido
Dirigi-me imediatamente à Casa Episcopal. D. António respondeu-me:
- Diga ao Dr. Sá Carneiro que eu assumo a responsabilidade pelas consequências.
E assim o Dr. Sá Carneiro fez parte da Direção da Obra desde 1971 até 1975.
. No dia do funeral de Salazar, almocei, por coincidência, com D. António. No final do almoço, ao dirigirmo-nos para a sala de audiência, passámos numa sala onde uma televisão mostrava o caixão do ditador a ‘descer à cova’.
D. António, surpreendido, parou; benzeu-se; estático, manteve-se em silêncio; pareceu-me balbuciar uma oração. No fim, benzeu-se e, em surdina, disse: “Este já não faz mais mal a ninguém.
. Num momento de grande tensão entre a Obra e o Governo, D. António falava-me dos bispos do Porto que pugnaram pela liberdade da Igreja face ao poder político, com grande destaque para o seu guia, D. António Barroso.
Quando lhe perguntei a razão para esta independência, em contraste como os de Lisboa, respondeu-me de modo muito simples.
- É que nós não casamos as filhas dos Senhores Ministros nem lhes batizamos os netos…
Em conclusão… Carismas diferentes, mas, fruto dum único Espírito, o mesmo amor à Igreja. (19/2/2025)
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