MEMÓRIAS QUE URGE PRESERVAR
No passado dia 7 de dezembro, o CIPA – Centro Interpretativo do Património da Afurada – encheu-se para assistir ao ‘lançamento’ do livro ‘Três Pedaços de Mim’, dum filho da terra, o jornalista José Marques da Cruz que, na ‘Nota Explicativa’, começa por nos dizer: “Porquê ‘Três Pedaços de Mim? (…) Creio que ‘Poemas’, ‘Crónicas’ e ‘Fotografias’ constituem uma trilogia do mais importante que ocupou os meus dias, com sabores e dissabores, altos e baixos, alegrias e tristezas, convicções e sonhos”.
Nos poemas, encantou-me o lirismo saudoso e o bucolismo, em ritmo de salmodia, como em ‘Ondas… De Sonhos “que mereceu o seguinte comentário: ‘Um poema feito de mar (…) Apesar de cantado por todos os poetas ao longo dos tempos… este é um Mar muito deste poeta, um Mar de muitas emoções”.
“Noite com estrelas. /Na restinga da praia /duas cristas de ondas /correm, brancas e paralelas, /até se abraçarem, / desenhadas pela lua. (…)
Parti mais forte, muito mais, /ao sentir as cristas brancas /das ondas mensageiras. / O mar sossegou, então, meus ais. /Serviu-me saudades doces e quentes, /desenhadas pela lua.” (pág. 14)
Nas fotografias, afloram rostos duma comunidade sofrida, onde o olhar gaiato das crianças contrasta com o luto das mulheres, que, na ‘Missão Cumprida’, encontra forças para sorrir.
Fig. 1
Legenda - MISSÃO CUMPRIDA
“O sorriso de satisfação impresso no rosto tisnado pelo sol e pela maresia expressa uma sensação de dever cumprido”.
Das crónicas em ‘O Comércio do Porto’, partilho convosco aquela que, por desejo do autor, foi lida na sessão de apresentação.
“História Triste de Meninos Tristes.
A rapaziada nasceu ali na Ribeira. Há sete, oito anos. Aprendeu, nas vielas húmidas, o que é não ter ‘eira nem beira’. Deu as mãos à rua e à vida. Começou a sentir bem cedo o amargor de vivência à ‘rédea solta’. Ajuda a fazer turismo para os outros verem, enquanto os pais se esfarrapam nas cargas e descargas, e as mães se corcovam carrejoneando uns míseros patacos, ou gritam pregões à beira-rio.
A petizada (alguns) da zona das ruas feias e sombrias executou, na tarde soalheira de sábado, sem esperar pela ajuda das trevas, uma artimanha. Ou experimentou alguma técnica que as imagens cinzentas dos écrans pequenos lhes vão repetindo hoje. Repetiram ontem. Há uma semana. Repetirão amanhã.
Controlando decerto as ofertas dos transeuntes para que o ‘golpe’ não falhasse de todo, o rapazio de pé descalço, iluminado pela sua pouca idade, engendrou um artifício que lhe permitiu sacar da caixa das esmolas, existente na Rua do Infante D. Henrique, junto da igreja de S. Nicolau, uma nota de vinte escudos. Material de trabalho: um arame.
Mas não foi longe o gosto da proeza. Uma senhora, que passava no local, gorou o assalto, apreendendo a nota verde. Verde de uma esperança muito desejada nas privações do dia-a-dia. Acompanhou a actuação com a ameaça de que iria chamar a Polícia. E foi.
Da 9.ª esquadra ainda se deslocaram. Os garotos, porém, haviam fugido, repetindo um gesto de quando jogavam a bola na via pública, à falta de parques onde possam viver a sua meninice. Por isso, não foram identificados os miúdos que só pararam muito longe do local do ‘crime’.
E longe, bem longe, terão até sorrido com a proeza, balbuciando pragas que o empedrado húmido das ruas íngremes da cidade velha há muito conhece. Será mais uma história que um dia contarão, quem sabe se à viela onde moram, da zona da cidade que os abastardou. Mas decerto não deixarão de levantar o dedo acusador, amaldiçoando a sorte de terem nascido em tugúrios, em terreno fértil ao despontar de vícios que o desdém acarinha. (in “O Comércio do Porto”, 06/11/1972)
Quantos destes meninos eu abracei quando, em 1961, com o apoio de Monsenhor Miguel Sampaio, criámos o parque infantil da igreja dos Grilos e, acompanhados por D. Armindo, os levámos a passar quinze dias em Albergaria da Serra… Como recordo a ternura do mais pequenino, de apenas seis anos, que, à noite, adormecia com a mão agarrada à minha, como se fosse a de sua mãe…
A apresentação desta obra preciosa – mais que uma biografia, é a história de toda a comunidade, no dizer duma autarca local - esteve a cargo do professor José Vieira que culminou, poeticamente, a sua magnífica intervenção com a leitura da última perícope do Prefácio de que é autor: “A flor, toda a flor é um hino à perfeição. A perfeição contempla-se no silêncio, mas a flor é a rainha do diálogo”. (15/1/2025)
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