EM VÉSPERAS DO '25 DE ABRIL' - "NÃO PODEMOS IGNORAR"...
Fazendo-me eco do livro ‘Amor e luta’, de Fátima Silva, partilho o testemunho dum dos primeiros prisioneiros do Tarrafal que nele penou durante 16 anos: “Joaquim Ribeiro - Um Herói na Revolta dos Marinheiros” (8 de setembro de 1936). Ouçamo-lo.
O ‘campo’ - “Localizado numa ampla planície, o Campo de Concentração do Tarrafal, ou Campo da Morte Lenta (…), era circundado por arame farpado com um duplo portão de entrada, dominado por dois fortins à prova de bala para o que desse e viesse.”
A ‘morte lenta’ - “Oito meses que pareciam séculos já nos tinham enfraquecido bastante o organismo: com má alimentação, os trabalhos forçados sob o Sol escaldante em clima doentio e a falta de qualquer preventivo coletivo contra o paludismo. A nossa magreza acusava sinal de perda de peso.
O suplício de cada dia - “Mosquiteiros (…) não possuíamos. O único cobertor que cobria as nossas camas chegava a ficar literalmente coberto de terra. Aumentava o nosso suplício nestes dias de vento. A comida transportada em terrinas abertas ficava muitas vezes coberta de pó se as faxinas esqueciam de as cobrir com um pano de ocasião.”
A revolta - “Chegou-nos a notícia de que a água da fonte estava inquinada, mas o ‘Manuel dos Arames’ não nos permitiu fervê-la mesmo nesta emergência. Travou-se, então, uma luta de vida ou de morte. A luta pela vida teve aqui a sua mais cabal expressão. Impelidos como por uma mola lançámo-nos corajosamente à pilha de lenha destinada à cozinha. Vieram os carcereiros obrigar-nos a repor a lenha no local, ao que nos negámos, a gritar que não nos deixaríamos matar assim. Fizemos fogueiras e ordenaram-nos que as apagássemos. A luta foi tremenda para fervermos as primeiras latas de água.”
O mais infame e cruel – A frigideira
“O castigo mais desumano, reservado aos mais lutadores, era a frigideira. A frigideira era uma construção em cimento, fechada, completamente fechada, com as paredes, o chão e o teto em cimento. Uma caixa retangular com uns cinco a seis metros de comprimento por três de largura. Um bloco interiormente dividido ao meio por uma parede a separar duas celas, cada uma com a sua porta de ferro, que se abriam em sentido oposto. As portas de ferro tinham meia dúzia de orificiozinhos de diâmetro inferior a um centímetro por onde se fazia um simulacro de arejamento. Por cima das portas, junto ao teto, uma pequena fresta gradeada. Mais nada. O arejamento só podia ser feito quando a porta se abrisse para logo ser fechada, o que acontecia apenas de manhã e à tarde no momento da entrega das ‘refeições.”
- “Asfixiava-se ali dentro. A altura, no interior de cada uma as celas, seria de uns dois metros e meio no máximo, era, de facto, uma caixa completamente fechada e durante todo o dia estava sob a ação permanente do sol, por ter sido construída num local completamente isolado e sem hipótese de sombra. Apanhava o sol durante o dia inteiro.”
- “Não é necessário ter muita imaginação para se fazer uma ideia do que podia acontecer quando doze homens tentavam respirar dentro duma caixa daquelas, com o sol tropical a aquecer pelo exterior, e onde a evaporação do ar respirado escorria pelas paredes. Os corpos encharcados, o ar sem oxigénio sufocante, a fazer o sangue latejar nas fontes, os peitos oprimidos numa semi-asfixia de endoidecer, com toda aquela humidade viscosa, acicatada pelos ácidos pútridos do latão dos dejetos de que todos eram obrigados a servir-se.”
- “Vários homens juntos, uma semana, duas semanas, sem qualquer interrupção, alimentados um dia a pão e água, outro dia a pão e caldo de sopa, alternadamente, como determinavam a ordem do dia, que estabelecia o regime dos castigados. Além disso, pior também do que animais, tendo por cama o chão nu e áspero do cimento e por cobertor apenas o peso da atmosfera saturada e pestilenta.”
Concluindo - Só de ler, sentimo-nos com falta de ar e ficamos arrepiados com tanta malvadez. E isto num país de matriz cristã e dito de ‘brandos costumes’…
Como diz o poema Sophia de Mello Breyner, “Vemos, ouvimos e lemos – Não podemos ignorar”. Nem deixar cair no esquecimento… (16/4/2025)