O Tanoeiro da Ribeira

terça-feira, maio 28, 2024

PRÉMIO NOBEL DA LITERATURA 2023 - (I) - 'DÁ VOZ AO INDIZÍVEL'

“Uma realidade sem fronteiras que se consegue ouvir no silêncio.” Quando a Academia Sueca atribui o ‘Prémio Nobel da Literatura’, procuro informar-me sobre a biografia do laureado e, se possível, ler uma das suas obras. Assim aconteceu com Jon Fosse, ‘Prémio Nobel de Literatura de 2023’, com “uma prosa inovadora que dá voz ao indizível”, como afirmou a Academia. Norueguês, nascido em 1959, ‘”num país de maioria luterana, afirma-se claramente como católico”. Cresceu numa família que seguia o pietismo, a forma mais austera de luteranismo, tornou-se ateu durante a juventude, e, em 2013, converteu-se ao catolicismo onde, disse, “encontrou uma certa forma de paz”. Para melhor o dar a conhecer, partilho convosco duas publicações bem recentes: uma entrevista publicada pelo ‘Público’ (22/3/2024) e uma carta transcrita pelo ‘7Margens’, no dia Mundial do Teatro • Entrevista - “A minha escrita tirou-me do ateísmo” . Pergunta - A sua aproximação à Igreja Católica alterou a sua escrita? . Resposta - “Não, o que mudou a minha escrita foi o pensamento de Eckhart (Frade dominicano, teólogo, filósofo e místico -1260 -1328). A Igreja chegou já muito tarde à minha vida. Mas já nos anos 1980 tive um período em que ia à missa. O catolicismo influenciou o Septologia, disso não tenho dúvidas, é óbvio. (…) . P. - “Já era crente quando começou a ler Eckhart, . R. - “Considerei-me ateu durante muitos anos. Não se consegue explicar o que acontece ao escrever numa visão apenas materialista, é impossível. Como a música de Bach, não se consegue explicar de onde vem, é impossível. Foi como se um espírito se tivesse aberto para mim, a que eu chamo desconhecido, e eu tornei-me próximo disso. Quando as pessoas me perguntavam se acreditava em Deus, comecei a responder que sim. Que sou crente. (…) . P. - Em “Manhã e Noite”, escreve que Deus está ao mesmo tempo próximo e longe. E neste último fala em ouvir a voz de Deus no nada... . R. - “Para mim, o nada é simplesmente uma palavra, e Deus é o oposto. (…) Só entendendo os atributos de Deus, assim pode-se falar com Ele, ou rezar, sentir a Sua proximidade, a distância, que Ele é uma realidade que não se consegue descrever. Uma realidade sem fronteiras que se consegue ouvir no silêncio. • Carta - “A arte é paz” “Cada pessoa é única e, ainda assim, como qualquer outra pessoa. A nossa aparência externa visível é diferente da de todos os outros, é claro, e isso é muito bom, mas também há algo dentro de cada um de nós que nos pertence exclusivamente – que é somente nosso. Poderíamos chamar a isso o espírito ou a alma. (…) Mas embora sejamos todos diferentes uns dos outros, também somos parecidos. Pessoas de todas as partes do mundo são fundamentalmente semelhantes, não importa que língua falemos, que cor de pele tenhamos, de que tom seja o nosso cabelo. Isto pode ser uma espécie de paradoxo: somos completamente iguais e totalmente diferentes ao mesmo tempo. Talvez cada pessoa seja intrinsecamente paradoxal, na sua ligação entre corpo e alma – tendo em si tanto a existência mais terrena e tangível quanto algo que transcende esses limites materiais e mundanos. Toda a boa arte (…) contém um mistério, por assim dizer. Algo que nos fascina e, portanto, nos empurra para além dos nossos limites e, ao fazê-lo, cria a transcendência que toda a arte deve conter em si mesma e à qual deve conduzir-nos. Não conheço nenhuma maneira melhor de unir os opostos. Esta é a abordagem exatamente oposta à dos conflitos violentos que vemos com demasiada frequência no mundo. (…) Porque as pessoas também têm um lado animalesco, movido pelo instinto de experimentar o outro, o estrangeiro, como uma ameaça à própria existência e não como um mistério fascinante. (…) A guerra é, portanto, a batalha contra o que está profundamente dentro de todos nós: algo único. E é também uma batalha contra a arte, contra o que está no cerne de toda a arte. (…) A guerra e a arte são opostas, tal como a guerra e a paz são opostas – é tão simples quanto isso. Arte é paz. (VP, 29/5/2024) (Continua no próximo número)

quarta-feira, maio 22, 2024

A PROPÓSITO DO DIA DA EUROPA - 'O PAI DO EURO'

Celebrou-se, no passado dia nove, o ‘Dia da Europa’. Em anos anteriores, evoquei a memória dos ‘Pais da Comunidade Europeia’ como Robert Schuman,( (cf. ‘Um Santo na Política’, VP, 24/11/2021), hoje, quero enfatizar o ‘Pai do Euro’, falecido em dezembro passado.. “O francês Jacques Delors, figura central da construção do projeto europeu, morreu ontem aos 98 anos. Socialista e católico, Delors liderou a Comissão Europeia entre 1985 e 1995. A criação do Mercado Único e o aprofundamento da integração europeia valeram-lhe a alcunha de ‘Pai do Euro’. (JN, 28/12/2023) Das muitas reações surgidas aquando da sua morte, umas fixavam-se nos méritos do estadista; outras iam mais além e realçavam as motivações evangélicas. . A Presidente da Comissão Europeia - “Foi um visionário que tornou a Europa mais forte. Seu trabalho moldou gerações inteiras de europeus “. . O Chanceler alemão – “Defendeu a unificação europeia como ninguém: durante uma década, dirigiu a CE e, como visionário, tornou-se mestre construtor da União Europeia como a conhecemos hoje”. . O Presidente da República - “Grande mentor da evolução das Comunidades, mobilizador do alargamento a Portugal e Espanha, encarna para muitos europeus a própria construção europeia. (…) No seu catolicismo militantemente progressista, encontrou sempre a força para ultrapassar as dificuldades, encontrar soluções, mantendo a Europa unida e alargada, um projeto que sempre foi de Paz, de progresso e de bem-estar, de caminho em comum para a resolução dos problemas comuns.” . O Prof. Guilherme d’Oliveira Martins - “Com militância cristã e com enraizados valores liberais e democráticos. (…) mantém sempre uma intensa atividade de militância social e nos grupos de cristãos inconformistas” (7Margens, 29/12/2023) . Na mesma edição, o jornalista Manuel Pinto, sob o título “Jacques Delors - Uma vida política inspirada pela mensagem cristã”, começa por sintetizar: “Ator e testemunha de um século vibrante e dramático, Jacques Delors faleceu esta quarta-feira (…) depois de uma vida intensa, marcada pela construção europeia e pela dimensão social e inspirada pela sua fé cristã”. A seguir, esclarece: “A fé cristã foi, no dizer de Isabelle de Gaulmyn, do jornal La Croix, “o fio vermelho” de toda a sua vida. (…) . Entrou na Ação Católica ainda adolescente, (…) filiando-se na Juventude Operária Católica, uma ligação que permaneceu ao longo de toda a vida. Tanto esta militância, como a que, com a esposa, viveram na direção do movimento Vie Nouvelle nascido do Escutismo Católico, decorreram sob a inspiração do personalismo cristão de Jacques Maritain e Emmanuel Mounier. Assente nas dimensões pessoal, religiosa e cívica, a formação e ação comunitária valorizavam a intervenção na vida da Igreja, o ecumenismo e a vivência da pobreza evangélica, o que lhes chegou a trazer tensões com os responsáveis eclesiásticos”. E conclui… “A dimensão dos valores – da verdade, da frontalidade, da exigência, da solidariedade – acompanharam-no, mais tarde, no seu percurso político, tornando-se uma figura marcante pela visão e pelo testemunho.” Relembro o que Jorge Cunha escreveu (VP, 10/1/2024): “A biografia política de Jacques Delors é profundamente condicionada pela sua fé cristã. (…) Dois aspetos merecem, neste capítulo ser postos em evidência: o seu empenhamento pela moralização do trabalho e a sua convicção da política inspirada pelos valores éticos“. Termino com uma palavra de louvor à JOC e ao Escutismo que estiveram na base da ‘intensa atividade de militância social’ deste estadista que ‘moldou gerações inteiras de europeus’ e foi o ‘mestre construtor da União Europeia como a conhecemos hoje’. Os valores éticos da liberdade, da igualdade, da justiça e da fraternidade enformaram estes homens que, na península ocidental da Eurásia que a história fez continente, construíram uma Comunidade de Estados cimentada em ideais democráticos. Merecem que, na linha da ‘Declaração Schuman’ (9/5/1950) em cujo aniversário celebramos o ‘Dia da Europa’, lutemos por uma Europa de paz e não de guerra; de nações e não de impérios, sem ódios nem discriminações. (22/5/2024)

terça-feira, maio 14, 2024

PARA MEMÓRIA - A IGREJA E O '25 DE ABRIL' - (VI) - OS PRESOS POLÍTICOS

Hoje, é com vénia, que me faço eco do texto ‘Comissão de Socorro aos Presos Políticos: da militância à crítica e à rutura dos católicos’, publicado por 7Margens, no passado dia 21 de abril. O seu autor, Edgar Silva, é doutorado em História e coordenador do Partido Comunista Português na Madeira Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (CNSPP) Criada em 1969, “era suprapartidária, constituída por muitos elementos independentes de partidos políticos e por outros ligados às diferentes formações partidárias que constituíam a oposição ao regime. É assim que, para além daqueles elementos independentes, entre os quais nove padres católicos e um pastor protestante, faziam parte da Comissão pessoas ligadas ao PCP, ao futuro Partido Socialista e às várias correntes marxistas-leninistas que então despertavam para a ação. E isto não foi tarefa fácil, dado o antagonismo com que se defrontavam no terreno político algumas dessas formações» (Nuno Teotónio Pereira, católico, destacado obreiro e fundador da Comissão). Atividade da Comissão Dava “notícias das prisões, das práticas de tortura, dos julgamentos efetuados, das penas aplicadas, das condições prisionais que vigoravam nas diferentes cadeias, das ações de solidariedade, das reclamações feitas junto das autoridades, assim como das suas próprias atividades. Nestas incluía-se o apoio financeiro às famílias de presos políticos, a designação de advogados de defesa e outras iniciativas, como foi a realização de colónias de férias para filhos de presos políticos em 1972 e 1973». (Frei Bento Domingues, um dos primeiros membros e fundadores da Comissão) Dinâmica na luta contra o ‘Estado Novo’ “A Comissão desempenhou um papel de denúncia do regime e da sua repressão. (…) E se não é possível estabelecer um nexo de causalidade entre os efeitos deste e de outros movimentos sociais em Portugal e o derrube do regime, pelo menos, será possível reconhecer que (…) correspondeu a uma decisiva frente de luta contra o Estado Novo.” “O protagonismo católico” “O protagonismo de sectores católicos nos diversos níveis de organização e ação da Comissão teve especial relevância, de sobremaneira, no que materializou de contributos fundamentais por parte do catolicismo social para a transformação da sociedade portuguesa. Aquela foi também uma das expressões das novas modalidades de politização de sectores do catolicismo durante o Estado Novo, no que correspondeu a uma corrente de ideias, iniciativas e projetos desenvolvidos por católicos que procuravam novas respostas para os graves problemas que o País enfrentava.” Por um ‘Estado de Direito’ A luta da Comissão fez-se ouvir na, então, Assembleia Nacional pela voz da ‘Ala Liberal’ onde, entre outros católicos como o Dr. José da Silva, advogado de defesa do P. Mário Oliveira, pontificava o Dr. Francisco Sá Carneiro que, por convite de D. António Ferreira Gomes, fazia parte da direção da Obra Diocesana de Promoção Social. Lembro um dia em que estava visivelmente desiludido e agastado. Contou (antes das reuniões semanais, sempre nos falava das suas atividades parlamentares) que, com uma delegação de deputados, tinha ido falar sobre os ‘presos políticos’ com o Ministro do Interior, Dr. Gonçalves Rapazote, formado em Direito na Universidade de Coimbra. E para criar ambiente, começou por lhe dizer: - “O Senhor Ministro como homem do Direito…” Que logo o interrompeu: - “O senhor deputado está a falar com o ministro; o homem do direito ficou à porta. Foi o golpe final em quem acreditara na possibilidade de levar o Regime a respeitar os direitos políticos de informação e expressão: de reunião e associação. Esta desilusão levou-o a renunciar ao mandato de deputado (25/2/1973). E a causa próxima dessa renúncia foi a Assembleia recusar-se a debater o projeto de lei, o último por ele apresentado, sobre a amnistia dos presos políticos. Porque, afirmou, “os chamados crimes políticos são (…) a expressão da intransigência de um poder ilimitado que não admite a livre expressão crítica ou a atuação contrária de quem dele diverge.” Foi a rutura com a chamada ‘primavera marcelista’ em que quis acreditar. E não foi o único… (15/5/2024)

quarta-feira, maio 08, 2024

PARA MEMÓRIA... A IGREJA E O 25 DE ABRIL - (V) - ANÓNIMOS

“Muitos outros colegas sofreram e foram ostracizados e marginalizados justamente por causa das suas posições políticas.” (P. Fanhais - 7Margens 30/1/2024) Hoje, quero lembrar os presbíteros que, à luz do Evangelho, iam despertando os católicos para a situação política em que vivíamos. Não ficaram na história, mas fizeram história no anonimato das suas paróquias. Passaram despercebidos à comunicação social, mas não à PIDE. “Ide por todo o mundo, proclamai o evangelho a toda a criatura.” (Mc 16,15). Esta proclamação implica o anúncio da Boa Nova, mas também a denúncia do mal e o prenúncio de novos caminhos. Se uns não aceitaram e reagiram…. “Senhor Padre, com pretextos de toda a consideração e respeito, vimos felicitá-lo pela maneira como na sua homilia nesta festa da Assunção de Maria Nossa Mãe, o Senhor Padre foi tão doutrinador tão explícito e tão claro na transcendência difícil do assunto (…) Não calcula o Senhor Padre como nos enche a alma de Luz quando é assim doutrinador simples e claro e nós a vermos que também a sua alma está imbuída dessa Fé que nos transmite. (…) Desculpe e permita-nos que lhe peçamos ser sempre assim: Doutrina, Doutrina porque o Senhor tem capacidade de fazer alar os seus ouvintes e de os empolgar, mas, tão somente com o Evangelho, a Doutrina. Para quê Filosofias que o povo não entende, para quê politiquice contundente que as almas aborrecem?” (Carta anónima assinada por Salafrárias) … Outros compreenderam e souberam reconhecer. Apenas um exemplo… Era uma paróquia que, com autorização episcopal e após auscultação de toda a comunidade, iniciara uma ‘organização económica’ que procurava conciliar duas orientações evangélicas, aparentemente, contraditórias: “O operário é digno do seu salário” (Lc 10,7); “Recebestes de graça, dai de graça” (Mt.10,8). O dinheiro oferecido livremente pelos paroquianos – os serviços, como batizados, casamentos e funerais, eram gratuitos - entrava numa ‘bolsa comum’, gerida por uma ‘Comissão’ com leigos de manifesta credibilidade que estipulava e pagava a mensalidade do pároco e custeava as demais despesas. No aspeto económico, o pároco era um ‘trabalhador por conta de outrem’. Nos finais de 1975, uns meses após ter sido substituído por um novo pároco, recebeu a carta, enviada pela Comissão Administrativa com a sua ata nº 93, que passo a transcrever: “Atendendo: - a que a todo o trabalhador por conta de outrem é obrigatório o pagamento do 13.º mês e um subsídio de férias; - a que mercê da sua organização económica, a Paróquia tem amealhado, neste momento, cerca de (…) contos; - a que sem essa organização essa verba poderia não existir (pelo menos depositada em nome da Paróquia) mas sim ter revertido em proveito do próprio Pároco; (…) - a que só de há três anos para esta parte lhe foi concedido o chamado 13º mês; - a que nunca lhe foi concedida qualquer verba, a título de subsídio de férias; (…); - a que dentro dos sãos princípios Cristãos realizou um trabalho de mentalização e emancipação muito válida nesta Paróquia, (…) - a que e sempre dentro das bases do Evangelho lutou sem tibiezas e frontalmente pelas situações de injustiça, privilégio, subalimentação, etc., apontando casos concretos existentes dentro da nossa Paróquia; - a que a sua liberdade chegou a perigar, mercê da objectividade e desassombro que punha em certas homilias, quando apontava, com bases concretas as já anunciadas situações de injustiça, privilégio e até a própria guerra colonial; (…) Propomos que lhe seja concedida uma gratificação. (…) Esta gratificação que soma a quantia de (…) afigura-se-nos que, de modo algum, paga tão relevantes serviços prestados à Comunidade e à Igreja”. A ata era assinada, em primeiro lugar, pelo novo pároco a que se seguiam, por ordem alfabética, as assinaturas dos oito membros da Comissão. Esta deliberação foi, posteriormente, ratificada - não sem vozes discordantes - numa assembleia geral da paróquia convocada expressamente para o efeito. “Vim lançar fogo sobre a terra. (…) Pensais que vim estabelecer paz na terra? Não, eu vos digo, mas a divisão. De facto, a partir de agora, estarão cinco divididos numa casa: três contra dois e dois contra três.” (Luc. 12,49-52) (8/5(2024)