'A BÍBLIA TINHA MESMO RAZÃO'
Tempos atrás, ao sair do supermercado, encontrei o meu velho amigo Amadeu, professor de História, que me disse: - Sabes, acabo de ler o livro “A Bíblia tinha mesmo razão”, de Francisco Martins. Ele sabe muito daquilo. Eu é que fiquei baralhado…
Expliquei-lhe que também o tinha lido, motivado pelo tema e pela credibilidade do autor, professor de Literatura Bíblica na Universidade Gregoriana, em Roma.
E a conversa ficou por aqui porque a família esperava-o e os ‘meus-gelados-para-os-netos’ não aguentavam muito tempo fora do frigorífico…
Quando nos preparamos para celebrar a Ressurreição d’Aquele que disse: ‘Não penseis que vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim abolir, mas cumprir’ (Mt 5,17), partilho convosco a minha leitura:
Na ‘Introdução’, o autor começa por definir os objetivos: “Investigar o que podemos saber, com rigor científico, sobre a História do povo que nos legou a Bíblia, o relato das peripécias que marcaram a sua existência e deram corpo à sua identidade coletiva”. (pág. 21).
E ainda: “Também nos motiva o desejo de compreender melhor a relação entre a Bíblia e a História, isto é, entre as tradições da memória comum e os eventos e as circunstâncias que as inspiraram.” (pág.22)
Em “Duas notas finais”, depois de esclarecer que o estudo se limita ao ‘Antigo Testamento’, declara: “destina-se, em particular, aos crentes – sobretudo, judeus e cristãos – para quem a Bíblia, além de um ‘clássico’ da literatura mundial, é também a Palavra de Deus”.
Para, de seguida, afirmar: “Reconstruir a História por detrás das histórias de Israel é simultaneamente um serviço à ciência e aos textos, porque nos abre à inteligência mais profunda e madura do que se quer comunicar e, para quem crê, da forma como Deus o desejou comunicar” (pág. 25)
A partir daqui, entra no âmago do tema com os capítulos
II. “Os princípios: os relatos patriarcais em Génesis” (pág.51).
III. “O êxodo: Israel no Egipto ou o Egito em Israel” (pág. 81).
IV. “O Deus da Bíblia: a História de Yahvé” (pág. 113).
V. “Israel em Canaã: os livros de Josué e dos Juízes” (pág. 149).
VI. “Os inícios da monarquia em Israel” (pág. 179).
VII. “Israel: o reino esquecido?” (pág. 215).
VIII. “Judá: a História do reino do sul” (pág. 249).
IX. “A morte e a lenta ressurreição de Jerusalém” (pág. 287).
X. “O fim da (nossa) História e o início do Judaísmo” (pág. 321).
Após uma aturada e muito documentada análise em cada um destes capítulos, apresenta, na ‘Conclusão’, uma síntese bem estruturada que responde à pergunta em título:
“Dito isto, a Bíblia tem ‘razão’, isto é, tem lógica na forma de se relacionar com a História. Antes de mais, é preciso ter consciência de que a rememoração do passado obedece não à simples curiosidade pelo que terá acontecido, mas a imperativos de ordem teológica.
Ao propor o êxodo do Egito como a experiência fundacional da consciência de povo eleito, o relato bíblico está a convocar, muito provavelmente, um evento histórico, mas com o intuito de o transformar num elemento definitivo da identidade coletiva, passível de ser revivido e celebrado por aqueles que herdaram o mesmo vínculo a Yahé.” (…) Nada disto, contudo, é feito sem a História ou ‘contra’ a História.”
E termina: “Além de fontes sobre o passado, os textos bíblicos são também fontes do passado que, graças a um ininterrupto e admiravelmente fiel processo de transmissão textual, se oferecem a exegetas e historiadores como objeto a estudar. No fundo, são eles também parte do passado que se deseja resgatar e, muito provavelmente, a razão principal pela qual esse passado nos continua a interessar milénios depois. “(pág.341)
Esta é a última mensagem dum livro com muito interesse, escrito “a pensar num público que talvez já não conheça a fundo os relatos bíblicos e que ignora, quase por completo, as mais recentes descobertas arqueológicas e o que daí adveio para a compreensão da História do povo de Israel (pág. 15)”. Mas de íngreme acesso para quem não estiver, minimamente, habituado a percorrer os caminhos da exegese bíblica.
Termino com uma palavra de louvor e gratidão ao meu ilustre professor, Dr. Godinho, que, uns anos antes do Vaticano II, trouxe uma lufada de ar fresco ao ensino/estudo da ‘Sagrada Escritura’, no Seminário Maior do Porto. (2/4/2025)