Depois de Nos alvores da Obra Diocesana, Para Além das Margens, No Princípio foi assim, O Sonho e as Estrelas, João Alves Dias voltou a reunir os seus artigos de publicação regularíssima no jornal A Voz Portucalense, para nos disponibilizar um acumulado de reflexão cultural absolutamente pertinente para a nossa compreensão enquanto pessoas, cidadãos, profissionais, agentes, religiosos ou não.
Esta Viagem Que Nos Plasma – tal é o título do livro decorrente de uma criação metafórica que a leitura ajuda a esclarecer, mas que se manterá desafiante de significações. Na capa de Adelaide Sousa, o arranjo gráfico que sobrepõe o homem de Vitrúvio, de Leonardo Da Vinci, ao mar e ao céu, remete para as cores quentes do plasma solar. A ideia de perfeição e de harmonia entre a natureza e o homem e este como centro do universo, torna-se veio condutor de perplexidades. Viagem e plasma são núcleos semânticos que nos são familiares, ambos muito concretos e muito ligados ao corpo, ao mundo físico dos estados da matéria, a modos de conhecimento e de representação do universo. Na contemporaneidade, são marcadores de sentido, a viagem pela globalização, o plasma pela procura da energia inesgotável. (Somos dependentes de plasmas!)
Se o título abre a curiosidade, a leitura gerará um compromisso cultural, de proximidade ou de polémica, mas não de indiferença. Tomo como exemplo a síntese feita pelo Carlos Sousa no Prefácio, a qual é o testemunho de quem se deixou atrair, seduzir, marcar, pela influência do padre João, a sentir-se agente transformador de sua comunidade (p.8). O Frontispício é sobre o tempo vivido, o tempo como acção, o tempo como coração. Esta ideia é transposta para a música El Condor Pasa, uma apropriação cultural para a prática do cantado religioso que é em si mesma um exemplo acabado de viagem dos sons à volta do mundo. Esta emotividade guia a escrita, compõe-na. Num dos capítulos principais da obra, Estátua Interior se fica a saber como foi plasmado, moldado enquanto criatura, enquanto pessoa, o autor. «Ungido ou tocado» por Santa Justa, o rapaz do Tanoeiro colheu da terra, entre campos e minas, histórias exemplares que o guiarão pela vida e determinarão a sua dinâmica relacional de estar no seu tempo: sempre em missão de serviço, de «pastor de uma comunidade, de comunidades». Do padre João ao presbítero casado João Alves Dias, professor, cidadão de honra da cidade do Porto, o livro tem o seu autor como singular testemunha do nosso tempo.
A Viagem começa na criação da Obra Diocesana de Promoção Social (criada em 1964, pela Diocese do Porto, Câmara Municipal do Porto e Instituto de Serviço Social do Porto), segue pela criação da Paróquia de Nossa Senhora do Calvário e Chega à capela de Nossa Senhora da Paz). Tem como pivot ou líder um jovem presbítero que se assume como mediador, cuidador, articulador de vontades. A Viagem é feita das memórias de caminhos municipais dos últimos 60 anos da vida do então presbítero João Alves Dias, mergulha na história familiar em contexto de periferia urbana ou de ruralidade intensa, agrega as memórias dos tempos de escolarização e formação, associa muitas outras viagens, quer de pessoas, quer de instituições. Começa em tempos do Concílio Vaticano II, mas vai recuperar memórias históricas da cidade do Porto, do país, da rede monástica por toda a Europa, de lugares e de situações que foram e são foco da atenção: fica comprovada a tese: a cultura como coluna dorsal de um povo (p. 100-102) fez e faz viajar, mediatizada pelas pessoas, pelos monumentos, pelos rios e pelas serras, pelo clima, pela alimentação, pelas relações humanas.
Voltemos ao título do livro. A determinação do título é feita por três classes de palavras incontornáveis: esta – demonstrativo de um presente intenso e extenso, agregador das vivências autorais, mas também distribuidor das mesmas por qualquer pessoa que viaje; que – recuperador relativo da viagem ou ênfase na mesma para a absolutizar como princípio de formação; nos – o pronome pessoal de todas as singularidades e colectividades possíveis. Este «nos» ficará a aguçar-nos o espírito crítico: quem integra este «nos»? O autor majestático?, ele e os seus próximos?, os que pensam do mesmo modo e jeito os assuntos da vida?, os que partilham das mesmas experiências?, os presbíteros?, os membros da comunidade religiosa?, os que escrevem e lêem as mesmas fontes?, os que entram na corrente da leitura e partilha das ideias? Todos somos chamados a estar no livro, em diálogo uns comos outros, seja qual for o espectro político ou as ferramentas ideológicas de análise.
A leitura do livro, em modo de peregrinação interior e exterior a nós, autor e leitor, o guião da viagem concretiza-se numa referenciação de pessoas (92 textos) e de instituições (19 textos), um dos núcleos principais da narrativa. No fundo, o autor conta a história de vida, sua e dos seus, com um estilo coloquial, perifrástico, se o tomarmos como partindo de um caso que o faz pensar e comunicar. Escreve e visualiza os percursos realizados, sugere muitos outros, soma o tempo nos anos de sua vida, mas estende-o na história local ou nacional, exterioriza-se e interioriza-se em documentação, em património, em usos e costumes, em narrativas, em datas e acontecimentos. Pela leitura percebe-se que o sentido do verbo plasmar vai da simplicidade de ser sinónimo de líquido vital à complexidade de ser figuração de energia. O meio termo da pragmática poderá remeter o leitor para um estado de composição ou moldagem em que a pessoa, o grupo, a família, a comunidade, a instituição, a sociedade, o mundo, se configuram como são, cumulativamente mais densos, mas também mais preocupantes nas suas fragilidades. O eu e o tu, este núcleo de pessoas é o nós que é o povo, que é a humanidade, o sujeito que viaja e a viagem resulta em plasma, acumula componentes que integram a sua composição enquanto estado físico: a pessoa é plasma, é matéria que se compõe de outros elementos. O sangue e a sua prototipicidade de sentido. Há duas fontes referenciais de plasma em todo o livro: uma, citação de Tolentino de Mendonça, plasmar uma comunidade (p. 141); outra, citação de Manuel Sérgio, referindo as dimensões da pedagogia do desporto como plasma normativo que trasvaza do humanismo filosófico e do socialismo político (p. 244). O autor tem um método de trabalho e de exposição: pensa com a razão e com a fé, abre os olhos à complexidade problemática do humano demasiado humano, escolhe a reflexão e desenvolve-a, deixa na mente do leitor dimensões de crítica, de elogio, de reparo, de projecto, de avaliação, foca a diversidade para salientar a unidade de sentido. Nos textos mais marcados pela crítica contundente ou nos textos mais discretos de valorização, o humano e o religioso estão sempre implicados e é na sua interligação que se perspectivam os desenvolvimentos.
Nas divisões categoriais dos estudos da cultura, é habitual esta aparecer-nos em três grandes aglomerados ou complexos de esquemas de compreensão, a cultura material, a cultura social e a cultura mental. Nestes três contentores, arrumam-se as mais diversas manifestações teóricas e práticas, desde a agricultura à metafísica, do físico ao espiritual, do biológico ao artificial, do sensiente ao inteligente. É também habitual arrumarmos as práticas dos seres vivos numa escala que vai do mais simples ao mais complexo, do mais popular ao mais erudito, do mais arcaico ao mais inovador, do mais natural ao mais artificial, do mais rude ao mais elaborado, etc. O livro de João Alves Dias manifesta-se como transversal a estas categorias, contribuindo para o arreigamento teórico de uma categoria de mistura e de transvase: a cultura religiosa, na medida em que os seus esquemas de conhecimento, conceptualização e utilização, cruzam as outras dimensões, implicam-nas e configuram-nas: a cultura religiosa parte do físico para o espiritual, integrando todas as dimensões do material, do social e do mental. Nas múltiplas viagens, também elas físicas, sociais e mentais, o autor elabora a compreensão da realidade a partir da paisagem, dos monumentos, dos caminhos, dos campos e das cidades, interligando as questões sociais com as espirituais, evidenciando significados acumulados ao longo do tempo, mas sempre com novas abordagens de compreensão, revisão, acrescento, descoberta. O religioso está intrinsecamente conceptualizado nas dimensões que lhe parecem exteriores e o autor salienta quanto os valores de comunidade, de património comum, de padronização de leituras e de interpretações, são sustentados pela prática e partilha de uma ferramenta simbólica religiosa, catequética, sem dúvida, mas nunca dogmática ou impositiva de códigos de reflexão ou de conduta.
A nossa contemporaneidade é marcada pela maior diversidade de manifestações comportamentais, pela maior proliferação de controvérsias, pelo maior questionamento de certezas ou de estabilidades de entendimento da realidade. O stress provocado nos indivíduos pela mudança tecnológica, pela conflitualidade entre povos e nações, pela mediatização de causas e de procedimentos extremados, desencadeia temores e receios, desorienta, induz estados de indiferença e de precipitação. Recorrendo a Peter Hanenberg, Cognitive Culture Studies, 2018, podemos perguntar como é que estamos a desenvolver mecanismos culturais e cognitivos para lidar com os mecanismos mais surpreendentes da mudança? Como funcionamos nesta «modernidade líquida» (Zygmunt Bauman, citado por Hanenberg), para responder aos desafios mentais de apreensão das culturas? Porque é que precisamos de ser mais «plasmas», mais fluidos, na reflexão sobre o nosso tempo? Onde buscamos territórios comuns de consenso e de empatia (Wexler, citado por Hanenberg)?
No quadro institucional de um jornal como A Voz Portucalense, João Alves Dias foi semeando interrogações e respostas que nos desafiam a conjugar o verbo que serviu de título à sua obra, verbo este que implica agentes causadores diferenciados, o Eu, o Tu, o Nós, onde se inclui a matéria, a natureza, o território, o clima, e também Deus.
Referências
Hanenberg, Peter (2018). Cognitive Culture Studies. Lisboa: Universidade Católica Editora.
Puchner, Martim (2023). Cultura – Uma Nova História do Mundo. Lisboa: Bertrand Editora, Lda.
José Machado, Braga, Abril de 2025. (VP, 13/5/2025)