O Tanoeiro da Ribeira

segunda-feira, março 31, 2025

'A BÍBLIA TINHA MESMO RAZÃO'

Tempos atrás, ao sair do supermercado, encontrei o meu velho amigo Amadeu, professor de História, que me disse: - Sabes, acabo de ler o livro “A Bíblia tinha mesmo razão”, de Francisco Martins. Ele sabe muito daquilo. Eu é que fiquei baralhado… Expliquei-lhe que também o tinha lido, motivado pelo tema e pela credibilidade do autor, professor de Literatura Bíblica na Universidade Gregoriana, em Roma. E a conversa ficou por aqui porque a família esperava-o e os ‘meus-gelados-para-os-netos’ não aguentavam muito tempo fora do frigorífico… Quando nos preparamos para celebrar a Ressurreição d’Aquele que disse: ‘Não penseis que vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim abolir, mas cumprir’ (Mt 5,17), partilho convosco a minha leitura: Na ‘Introdução’, o autor começa por definir os objetivos: “Investigar o que podemos saber, com rigor científico, sobre a História do povo que nos legou a Bíblia, o relato das peripécias que marcaram a sua existência e deram corpo à sua identidade coletiva”. (pág. 21). E ainda: “Também nos motiva o desejo de compreender melhor a relação entre a Bíblia e a História, isto é, entre as tradições da memória comum e os eventos e as circunstâncias que as inspiraram.” (pág.22) Em “Duas notas finais”, depois de esclarecer que o estudo se limita ao ‘Antigo Testamento’, declara: “destina-se, em particular, aos crentes – sobretudo, judeus e cristãos – para quem a Bíblia, além de um ‘clássico’ da literatura mundial, é também a Palavra de Deus”. Para, de seguida, afirmar: “Reconstruir a História por detrás das histórias de Israel é simultaneamente um serviço à ciência e aos textos, porque nos abre à inteligência mais profunda e madura do que se quer comunicar e, para quem crê, da forma como Deus o desejou comunicar” (pág. 25) A partir daqui, entra no âmago do tema com os capítulos II. “Os princípios: os relatos patriarcais em Génesis” (pág.51). III. “O êxodo: Israel no Egipto ou o Egito em Israel” (pág. 81). IV. “O Deus da Bíblia: a História de Yahvé” (pág. 113). V. “Israel em Canaã: os livros de Josué e dos Juízes” (pág. 149). VI. “Os inícios da monarquia em Israel” (pág. 179). VII. “Israel: o reino esquecido?” (pág. 215). VIII. “Judá: a História do reino do sul” (pág. 249). IX. “A morte e a lenta ressurreição de Jerusalém” (pág. 287). X. “O fim da (nossa) História e o início do Judaísmo” (pág. 321). Após uma aturada e muito documentada análise em cada um destes capítulos, apresenta, na ‘Conclusão’, uma síntese bem estruturada que responde à pergunta em título: “Dito isto, a Bíblia tem ‘razão’, isto é, tem lógica na forma de se relacionar com a História. Antes de mais, é preciso ter consciência de que a rememoração do passado obedece não à simples curiosidade pelo que terá acontecido, mas a imperativos de ordem teológica. Ao propor o êxodo do Egito como a experiência fundacional da consciência de povo eleito, o relato bíblico está a convocar, muito provavelmente, um evento histórico, mas com o intuito de o transformar num elemento definitivo da identidade coletiva, passível de ser revivido e celebrado por aqueles que herdaram o mesmo vínculo a Yahé.” (…) Nada disto, contudo, é feito sem a História ou ‘contra’ a História.” E termina: “Além de fontes sobre o passado, os textos bíblicos são também fontes do passado que, graças a um ininterrupto e admiravelmente fiel processo de transmissão textual, se oferecem a exegetas e historiadores como objeto a estudar. No fundo, são eles também parte do passado que se deseja resgatar e, muito provavelmente, a razão principal pela qual esse passado nos continua a interessar milénios depois. “(pág.341) Esta é a última mensagem dum livro com muito interesse, escrito “a pensar num público que talvez já não conheça a fundo os relatos bíblicos e que ignora, quase por completo, as mais recentes descobertas arqueológicas e o que daí adveio para a compreensão da História do povo de Israel (pág. 15)”. Mas de íngreme acesso para quem não estiver, minimamente, habituado a percorrer os caminhos da exegese bíblica. Termino com uma palavra de louvor e gratidão ao meu ilustre professor, Dr. Godinho, que, uns anos antes do Vaticano II, trouxe uma lufada de ar fresco ao ensino/estudo da ‘Sagrada Escritura’, no Seminário Maior do Porto. (2/4/2025)

quinta-feira, março 27, 2025

ESPAÇO - MULHER

No ‘Dia da Mulher’, veio-me à mente o discurso (7/2/2023) do Papa Francisco, na conferência “Mulheres na Igreja: artífices do ser humano”: “A Igreja é mulher: filha, noiva e mãe, e quem mais do que a mulher pode revelar o seu rosto? Ajudemo-nos mutuamente (…) a encontrar caminhos adequados para que a grandeza e o papel das mulheres sejam mais valorizados do Povo de Deus.” E interroguei-me - Que relevo tenho dado às mulheres nas minhas crónicas? Feita a investigação, apresento-vos os nomes que encontrei… Jovens: Cristiana Josefa (A Bombeira de Lourosa, 1/9/2010); Adriana Ferreira (No sorriso da flautista, 15/7/2023); Eliana Soares, do Rotary Clube do Porto (Caixa de Ressonância - JN: 136 anos depois, 12/6/2024); Esposas e mães: Maria Sofia Macário Clemente (O Apelo à Transcendência, 13/472011); Senhora Aninhas, de Vreia de Jales (Nossa Mãe é um tesouro, 16/10/2013): Albina Ferreira Gomes (O dia mais triste…, 16/11/2019); Maria Augusta Magalhães (As sonoridades pascais, 25/5/2023); Olga Celeste Maia (“Um copo cheio não aceita mais água…”, 24/10/2023; Maria Manuela Barbeira (Esta é a minha mãe, 20/3/2024); Tia Maria Rosa Tanoeiro (Sons da madrugada, 30/4/2024); Religiosas: Irmãs Carmelitas do Mosteiro de Bande, Paços de Ferreira (Os mosteiros – centros de espiritualidade e Cultura, 13/3/2010; Missionárias Combonianas (Olá, amigas e amigos, 10/9/2024); Catequistas: Mestra Maruja (A minha catequista, 9/11/2011); Fátima, em S. Nicolau (Alegria dos Avós, 29/7/2021); Professoras: Ana Teresa Costa Aguiar (Um minuto com Deus, 30//2019); D. Beatriz, minha professora primária (No início do ano letivo, 14/10/2019); professora Margarida, de Meinedo (No 17.º aniversário – uma evocação e um voto 6/1/2022 Trabalhadoras do campo e não só… Tia Maria, da Venda da Giesta (Homenagem às gentes do campo, 27/10/2020); Catarina Eufémia (Era uma vez uma tartaruga, 18/9/2013); Carquejeiras (Bestas de carga, 24/10/2018) Assistentes Sociais: Julieta Cardoso (Nasceu pequenina…, 27/5/2015); Augusta Negreiros e Maria Elisa Barbosa (Sessenta anos são passados. E a ‘Obra’ aí está. 10/2/2024) Atletas: Filipa Martins, (Desporto. Humanismo. Transcendência, 23/10/2024) Pintora – Paula Rego, (A Menina que pintou a Verdade, 11/12/2024) Cientista – Madame Curie (Destruída pela sua descoberta salvadora ,6/2/2025) Jornalista – Victoria Amelina (Um rosto com nome ) Músicas: Helena e Madalena Sá e Costa (No Centenário duma Pianista, 19/6/2013); Teresa Salgueiro (É no Mistério que encontro a Paz, 15/10/2014); Guilhermina Suggia (A Paganina Portuguesa, 6/4/2022); Maria João Pires (Nasceu para confundir os anjos, 30/10/2024) Escritoras: Sophia de Melo Breyner e Maria de Lourdes Belchior (Santidade ao pé da porta, 23/1/2019); Ana Luísa Amaral (A Poesia entre as panelas de cozinha, 21/9/2022); Lídia Jorge (A Paz do Olhar, 24/6/2023); Isabel Allende (A beleza está nos pormenores, 20/9/2023); Rosária Lança (Gentil Camponesa, 20/12/2023);Pearl S. Buck, prémio nobel da Literatura, (A História da última mulher que governou a China, 20/2/2025) Inês Pedrosa (Nasceu para confundir os anjos, 11/12/2024) Interventoras Sociais: Ana Guedes (Histórias Exemplares, 12/6/2013); Maria Carolina Furtado Martins (Candeias de Nossa Senhora, 3/10/2018); Manuela Silva (Gostei muito de viver, 23/10/2019); Servidoras da causa política: Maria de Lourdes Pintasilgo (Os católicos e a ‘Causa Política- I, 14/4/2021); Maria da Conceição Moita (Os católicos e a ‘causa Política- II, 21/4/2021); Imperatriz – A Imperatriz Cixi (A História da última mulher que governou a China, 20/2/2025) Filósofas: Edith Stein e Anna Arendt (A Inteligência Espiritual e o Silêncio, 6/6/2018) Servidoras da Humanidade: Edith BrucK - ‘luz na escuridão’ e Irena Sendler - Anjo do Gueto de Varsóvia - Aromas Pascais, 6/4/2021); Santas: Beata Isabel da Trindade- Carmelo de Flavignerot (O verão é solidão, 15/9/2010); D. Sílvia Cardoso (Apóstola da Misericórdia, 9/12/2015; Uma Mulher de Eleição, 2/3/2016) Um Aceno de Deus, 22/7/2020; Madre Teresa de Calcutá (Parceiros ou Competidores, 12/11/2019). Fiquei surpreendido por esta constelação de mulheres, mais ou menos conhecidas, que habita os meus textos… E a Igreja? E certo que o Papa Francisco tem nomeado mulheres para cargos importantes., mas não basta. ‘Mãe e Mestra’, não pode contentar-se em acenar ao comboio da História que, com ou sem ela, continuará a sua marcha… (26/3/2025)

quinta-feira, março 20, 2025

A TOPONÍMIA NA MEMÓRIA DAS TERRAS

Há dias estive a reler o ‘Inquérito Arqueológico da Diocese do Porto’, organizado por D. Domingos Pinho Brandão, então reitor do Seminário da Sé. O Questionário incluía 19 entradas, a última das quais dizia: “- Lista, quanto possível completa, por ordem alfabética, dos lugares e sítios dessa freguesia e dos nomes mais caraterísticos dos seus montes e campos”. Na ocasião, não compreendi a pertinência desta solicitação num ‘inquérito arqueológico’, mas, hoje, passados quase setenta anos, vejo o seu alcance. A toponímia mantém tradições e referências que, doutro modo, se iriam perdendo ao longo dos tempos. E vários são os fatores que contribuem para essa perda: - Atribuição de nome de pessoas e acontecimentos a ruas com denominação antiga. Apenas três exemplos na cidade do Porto: a ‘Praça das Flores’ deu lugar à ‘Praça Dr. Teotónio Pereira’; a Praça Marquês do Pombal substituiu o antigo ‘Largo da Aguardente’, e o Campo 24 de Agosto fez esquecer o ‘Poço das Patas’ que, na Idade Média, fora ‘Campo de Mijavelhas’, como, no século XV, escreveu Fernão Lopes, na Crónica de El Rei D. João I: Elles todos prestes com grande esforço e vontade, sahiram todos fora, e foramsse apousentar ao chafariz de Mijavelhas que he pequeno espaço da cidade…” - Construção de novos arruamentos e urbanizações. Lembro dois casos contrastantes: . Um, negativo, remonta ao século XIX. A abertura da rua de Mouzinho da Silveira fez desaparecer a velha rua das Congostas que, da Alfândega Velha subia até ao Largo de S. Domingos de que, ainda hoje, há vestígios no Pátio de São Salvador. E também a igreja e o hospital de S. Crispim, padroeiro dos sapateiros, que nos recordavam os mesteirais da Idade Média. Atualmente, existe a Rua Nova de S. Crispim, junto do local para onde foi transferida a velha ‘igreja’, na rua de Santos Pousada, perto da Praça Rainha D. Amélia. . Outro, positivo, dos nossos dias - A abertura da Alameda de Cartes veio dar centralidade a um lugar muito antigo que foi sendo marginalizado. A propósito deste nome, um parêntesis: D. Florentino ao atribuir o nome ‘Nossa Senhora do Calvário’ à paróquia experimental que criou em 1967, no Porto Oriental, quis fazer memória dum antigo calvário que havia ao cimo da rua da Senhora de Campanhã. D. António Ferreira Gomes, em 1972, ao analisar o processo da sua criação definitiva, sugeriu que se chamasse ‘Nossa Senhora de Cartes’ porque este nome lembrava Chartes (Caridade). Consultado o Conselho Paroquial, este optou por manter o nome anterior e D. António respeitou a sua opinião. O mesmo Conselho solicitou à Comissão de Toponímia do Porto que a rua para a futura escola secundária recebesse o nome de Rua de Nossa Senhora do Calvário porque aí iria ser construída a sua igreja paroquial. O pedido foi aceite. E a rua aí está. A Câmara do Porto, ao atribuir o nome ‘Cartes’ à alameda que cobriu o ‘rio de Cartes’ e liga a VCI ao Parque Oriental da Cidade e à A43, veio perpetuar um nome que tendia para o esquecimento. E assim, se a rua de Nossa Senhora do Calvário dignifica uma memória que D. Florentino queria preservar; a Alameda de Cartes veio dar visibilidade a um nome que D. António acarinhava. - Nas aldeias, a substituição dos lugares por ruas. Em Campo, a minha terra, os organizadores mantiveram os nomes de alguns lugares, recorrendo à denominação ‘Rua Central’, da Ribeira, de Balselhas etc,, mas perderam-se sítios com grande significado como o da ‘Pica’ onde, durante a batalha de Ponte Ferreira, os liberais e os absolutistas, numa luta corpo a corpo, se ‘picavam’ com a ponta das baionetas, e o da ‘Cortinha do Porto’ no Couto de Luriz, onde, segundo velha tradição, terá nascido Santa Mafalda. O mesmo terá acontecido em muitas outras terras… Termino com uma sugestão: amigo leitor, se puder, registe o nome dos lugares e sítios que ainda persistem na sua terra. Preservá-los, é manter a memória das suas raízes. (19/3/2025)

terça-feira, março 11, 2025

ERA UMA ARRECADAÇÃO CAMARÁRIA

Em tempos do Vaticano II… Em dezembro de 1965, a Obra Diocesana iniciou o seu trabalho no bairro camarário de S. Roque da Lameira, em reuniões com moradores, na ‘Escola dos Rapazes’. No final duma reunião, apareceu-me um grupo formado, entre outros, por Aida Matos, Carlos Pereira e Joaquim Costa, falando-me do desejo antigo de construir uma capela para qual já tinham as pedras e o sino duma outra que tinha sido destruída na Praça do Marquês (antigo Largo da Aguardente): o sino foi entregue à guarda do pároco de Campanhã. O P. Tavares Martins, o pároco de então, disse-me que o havia colocado na torre da igreja. O Cónego Milheiro, o pároco atual, confirmou-me que lá permanece: “é o do lado norte (o mais pequeno) que tem as seguintes inscrições: Real capella de Santo Antonio da Aguardente oferecido por Antonio Ferreira da Silva em 1877 Narcizo Antonio da Costa Braga me fez em Braga no anno de 1877” Em toda a área da futura paróquia, não havia qualquer local de culto. No bairro do Cerco do Porto, comecei, em agosto de 1964, a celebrar na escola primária, por simpatia da Direção Escolar do Porto – a capela só viria a ser benzida em 1/11/1966. Outro local de oração nos bairros de S. Roque vinha mesmo a condizer com um dos meus princípios pastorais: Não são as pessoas que vão à igreja; mas é a Igreja que vai às pessoas. Nos dias seguintes, ao passar no bairro camarário, reparei num pequeno barracão, encostado ao muro dos quintais, onde se guardavam os utensílios camarários, em dois compartimentos separados: um, para a ‘Limpeza’ e outro, para os ‘Jardins’. Eram pequeninos, mas chegavam para uma Igreja que se queria fermento. O pavimento era de cimento e o telhado, de telha-vã, com as telhas e as ripas, à vista. Uma capela, assim, pensei, dava corpo ao novo paradigma eclesiológico nascido no concílio Vaticano II: ‘Uma Igreja Pobre e Peregrina’. E, como tal, Missionária. O grupo concordou com a ideia e, entusiasmados, fomos falar com o presidente de Câmara, Dr. Nuno Pinheiro Torres, que apadrinhou o projeto e, passado pouco tempo, os serviços camarários foram deslocados para a cave do Bloco 1. Na Igreja, sopravam ventos de esperança. O País, porém, continuava vestido de luto: era a Guerra Colonial que ameaçava não ter fim. Muitos jovens partiam cheios de vida e regressavam estropiados ou num caixão. Nossa Senhora da Paz seria a mãe que reconfortava este povo sem esperança. A sua imagem é a de uma jovem, de rosto sereno e braços abertos em gesto de acolhimento a lembrar a Senhora da Misericórdia. D. Florentino, Administrador Apostólico e grande devoto de Nossa Senhora, gostou do projeto e aceitou o nome que, então, lhe sugeri: Capela de Nossa Senhora da Paz. A futura paróquia de Nossa Senhora do Calvário ficaria com duas capelas dedicadas a Nossa Senhora: da Paz, no bairro de S. Roque da Lameira; e outra, a construir de raiz, no bairro do Cerco do Porto com o nome da sua padroeira. Com a criação da paróquia – experimental em 1/1/1967 e definitiva em 1/1/1973 – ambas assumiram o estatuto de ‘igreja paroquial’. E foi na simplicidade que se aí se celebrou a primeira Missa, em 7 de março de 1965 – domingo em que entrou vigor a Reforma Litúrgica, consagrada na Constituição Sacrosanctum Concilium. D. Florentino, que não pôde estar presente por se encontrar em Roma a participar no Concílio, veio celebrar, no primeiro aniversário da sua inauguração, onde também esteve presente a vereadora D. Maria José Novais que, em 15 de novembro desse ano, numa reunião o executivo camarário, falou da capela do bairro de S. Roque da Lameira “que funciona numa dependência cedida pela Câmara, sob o nome de Nossa Senhora da Paz’ (No Princípio foi assim…) Em 1968, por solicitação da paróquia experimental, a Câmara, sob o risco do arquiteto Fabião, fez uma remodelação que unificou os dois compartimentos e lhe deu a configuração atual. E foi assim que D. António a conheceu, quando a visitou em 1972 Quantas pessoas foram marcadas pela sua singeleza!... E com carinho a evocam… Ainda em setembro passado, um casal nela celebrou as suas ’bodas de ouro’ matrimoniais e enviou-me uma fotografia do seu casamento que dizia: ‘A celebrar um dia especial. Faz hoje 50 anos. o senhor casou este jovem casal. Hoje renovamos os mesmos votos de amor e fidelidade, no mesmo local. Obrigado.” (12/3/2025)

quarta-feira, março 05, 2025

A HISTÓRIA DA ÚLTIMA MULHER QUE GOVERNOU A CHINA

s O filme “1911 - A Revolução” que retrata as revoltas violentas que levaram à queda da Dinastia Quing e à implantação da República na China, incentivou-me a ler o romance histórico: “Imperatriz, a História da última mulher que governou a China” A sua autora, Pearl S. Buck – prémio Nobel da Literatura em 1938 – filha de missionários presbiterianos, nasceu nos Estados Unidos (1892), mas foi criada na China. Neste livro, afirma-o no Prefácio, tentou “retratar a Imperatriz Cixi com o maior rigor possível, recorrendo às fontes disponíveis e à sua própria memória da ideia que os chineses que conheceu na infância faziam dela”. Mais do que a vida da ‘Imperatriz Viúva’, como ficou conhecida, - a ‘avó’ do último Imperador da China - que governou durante 47 anos (1861- 1908), interessou-me descobrir, nas entrelinhas, o que, historicamente, os líderes chineses pensavam dos povos estrangeiros e perceber a intencionalidade negocial que se esconde sob a impassibilidade da face e a opacidade do seu olhar. Lembro sempre o que dizia o meu primo, diretor duma grande multinacional: “Estamos frente a frente horas e horas e, no fim, fico sem saber o que pensam… Nós falamos, falamos… e eles escrevem, escrevem… No seu rosto, nada transparece. No final, guardam criteriosamente as notas, fecham a pasta com a solenidade com que a abriram e saem com a vénia e o sorriso com que entraram. Posteriormente, comunicam-nos, por escrito, a sua decisão”. Mais do que comentários e contextos, limito-me a partilhar convosco algumas pistas que fui respigando ao longo das suas 495 páginas. Os estrangeiros – inimigos. O mestre da futura Imperatriz, “Falou-lhe da invasão dos inimigos vindos além das planícies do Norte –Russos; e dos mares do Oriente - Europeus e Japoneses.” (pág. 74) Vindos por terra – A Rússia, inimiga, mas aliada “Estamos rodeados por inimigos insatisfeitos, homens que nos são estranhos. Temos, porém, de evitar a guerra a todo o custo, pois entrar em guerra contra tantos seria, com efeito, montar um tigre. É prudente por conseguinte, aliciar um inimigo a tornar-se nosso aliado. Que este seja o do Norte, a Rússia. Entre todos, a Rússia é o mais asiático, como nós, um povo que nos é estranho, é verdade, mas asiático.” (pág. 442) Vindos do mar- os mais temíveis Europeus - “Contou-lhe que esses invasores, trezentos anos antes, foram, primeiro, homens de Portugal, em busca do comércio das especiarias. Devido às riquezas obtidas graças às suas pilhagens sem lei, tentaram outros homens europeus a fazer o que eles tinham feito, e vieram os conquistadores espanhóis e os holandeses em navios, e depois os ingleses que armaram uma guerra pelo comércio do ópio, e depois os franceses e os alemães.” (pág. 74) Japoneses - “Por duas vezes, aqueles inimigos ilhéus, os homens do Japão, tinham sido comprados para não fazer a guerra pela concessão de direitos sobre o povo tributário da Coreia. (Não fora isso) “e aqueles pigmeus ilhéus castanhos não sonhariam agora engolir todo o vasto reino. Teriam sido “repelidos para o mar e para as suas próprias ilhas tristes rodeadas de rochedos. Que morressem à fome!” (pág. 415) Pergunto: A Imperatriz dizia aos seus embaixadores: “Temos de negociar e aplacar, até as nossa forças serem suficientemente fortes para alcançar a vitória” (pág. 445). Este princípio continuará a nortear a diplomacia chinesa? Ontem como hoje… A China prepara-se para ser, no plano militar, o que já é no domínio económico e político, uma superpotência mundial a ombrear com os Estados Unidos, mas, no seu modo de agir, continua a respeitar as orientações a sua última Imperatriz: - “Suplico-vos que adieis a decisão e inventeis pretextos, não cedendo, mas também não recusando, até o modo ficar claro” (pág. 112) - “Não ceder, mas não resistir… ainda não. Prometer e quebrar as promessas “(pág. 151) Em síntese: “Os chineses são como os gatos. Esgueiram-se por todas as frestas em silêncio, farejando o caminho” (pág. 421). Como dizia a Imperatriz: - “Esperarei. Tenho sempre descoberto a minha sabedoria na espera. Conheço o meu próprio génio." (pág. 418)

terça-feira, fevereiro 25, 2025

'DESTRUÍDA PELA SUA DESCOBERTA SALVADORA'

Em 2013, fizemos uma viagem à Polónia para conhecer Wadowiche, a terra natal do Papa João Paulo II, e Cracóvia, a cidade de que foi arcebispo. Aterrámos em Varsóvia de que guardo três imagens: o Gueto de Varsóvia, onde morreram milhares de Judeus; o monumento a Chopin, o grande compositor romântico, daí natural; e a casa em que nasceu a primeira mulher a ganhar um Prémio Nobel e a única a ganhá-lo duas vezes em dois campos científicos diferentes: Física, em 1903, e Química, em 1911. Lembrei-me desta viagem, ao ler a biografia ‘Marie Curie Na Noite da Ciência (1867 – 1934)”, a segunda do livro ‘Vinte Grandes Mulheres do Século XX’, de Inês Pedrosa que me ajudou a responder à pergunta: Quem é esta polaca, chamada Marie Sklodowska que, por casamento com Pierre Curie - cientista que, com ela, recebeu o Prémio Nobel da Física – se fez também francesa e ficou conhecida como Madame Curie? - Uma vida difícil . Na infância - “No ano em que Maria veio ao mundo (1867), a Polónia russa perdeu até o nome que tinha: chamava-se agora ‘território do Vístula’. A língua russa foi imposta, e os polacos – entre os quais seu pai – foram progressivamente substituídos por russos em todos os cargos públicos.” (…) O jugo russo foi roubando tudo à família: o pai começou por perder o lugar e a casa de professor oficial e acabou por ter de transformar o minúsculo casinhoto da família num pensionato de estudantes: aos seis anos, Maria dormia na sala e tinha de ter a cama feita às seis da manhã.” . Na adolescência - Quando trabalhava como perceptora duma família rica, escreve a uma prima:” Não desejo nem ao meu pior inimigo que viva num inferno destes”. (…) . Casada - “Pierre e Marie viviam mal, quase miseravelmente”. . Viúva, devido a um relacionamento amoroso com um cientista casado, “a multidão moralista cercava-lhe as janelas, atirava-lhe pedras aos vidros, espumante de raiva: - Fora com a estrangeira!” (…) A Sorbonne incendiava-se: queriam retirar-lhe a cátedra, tentavam forçá-la a ir para a Polónia”. - Um coração bom e humilde … . “Aos dezassete anos, decidiu empregar-se para pagar os estudos da irmã Bronia, então com vinte. A irmã ainda hesitou em sacrificar desta forma Maria, mas ela foi taxativa: ‘Sejamos eficazes. Eu sou mais nova, posso esperar cinco anos.” (…) . “Vivia com grandes dificuldades materiais – chegou mesmo a não ter dinheiro para os selos das cartas que gostaria de escrever. Aguentou tudo por amor aos irmãos: ‘É preciso que vocês os dois, pelo menos, orientem a vossa vida conforme os vossos dons (…) Quanto mais tenho pena de mim mesma, mais esperança tenho em vocês”. - Solidária e benemérita… . “Quando recebeu o primeiro pagamento (por um trabalho que lhe encomendaram em 1897) foi imediatamente reembolsar a Fundação Alexandrovitch de Varsóvia que lhe concedera a bolsa – reembolso que não estava previsto, mas que ela considerava um elementar dever de solidariedade social para permitir o aumento do número de bolseiros.” . Quando, em 1914, rebentou o Primeira Guerra Mundial, Marie não só doou à França o que lhe restava do dinheiro dos Prémios, como, com a ajuda da filha Irène, então com dezassete anos (viria a ser a segunda mulher a receber um Prémio Nobel), organizou um serviço público de aparelhos de Raios X móveis, em ambulâncias francesas, que beneficiou um milhão de soldados feridos”. - Generosa e desprendida: “Marie recusou uma patente para a técnica de extracção e purificação do rádio que inventara, alegando que o rádio pertencia a todos os que quisessem usá-lo. Ou seja, recusou a fortuna que outros construiriam sobre a sua descoberta”. - Vítima das suas descobertas: “Porque se sentiriam os Curie tão cansados, mesmo durante as férias? (…) Não imaginavam que começavam a estar afectados pela radiação das substâncias activas que manipulavam. (…) Morrera a 5 de Julho de 1934, destruída pelas sua descoberta salvadora.” - Uma pioneira: “Madame Curie criara, mais do que uma revolução na ciência, uma nova linhagem de mulheres: as que não abdicam da inteligência criadora só por serem mulheres.” (26/2/2025)

quarta-feira, fevereiro 19, 2025

SALPICOS DE MEMÓRIA

Na passada sexta-feira, fez 61 anos que D. Florentino criou a Obra Diocesana de Promoção Social na Cidade do Porto. E, logo em 17 de outubro, ‘A Voz do Pastor’ escrevia: “A Obra Diocesana traz consigo a marca da sua época, os ‘anos sessenta’ das grandes utopias, em tempos de Vaticano II. É uma obra de e da, mas não para a Igreja; uma obra eclesial, mas não eclesiástica e, muito menos, clerical. Ao serviço de todos, sem distinção de género, idade, cultura, classe ou credo, é de leigos e dirigida por leigos”. Desde a origem, o seu nome incorpora duas notas que a caraterizam: ‘Obra Diocesana’ e ‘Promoção Social’. E porque ‘de leigos e dirigida por leigos’, os seus estatutos, aprovados em 17 de abril de 1967, referiram apenas a presença dum ‘sacerdote responsável’ como intermediário entre a Direção e o seu Patrono. No exercício dessa missão, reuni, semanalmente, com D. Florentino (1964 >1969) e D. António (1969 >1975). Esses encontros levaram-me a escrever, nas ‘Bodas de Ouro’ da Obra: “Dois Bispos, duas personalidades, dois carismas, em dois momentos diferentes da Obra. Um fundou-a, outro consolidou-a. Um gerou-a e embalou nos tempos da sua meninice, outro amparou-a nos momentos conturbados da adolescência (Nos Alvores da Obra Diocesana). Desse convívio, assíduo e longo, retenho algumas memórias: Com D. Florentino de Andrade e Silva. . Quando foi necessário estabelecer o ordenado para a assistente social D. Maria Augusta Negreiros, a primeira funcionária – até aí tudo funcionou em regime de voluntariado - concordámos que a Obra deveria pugnar para que os seus trabalhadores estivessem imbuídos pelo espírito de apostolado, mas não poderíamos praticar a caridade à custa da justiça. Era o ‘seu ganha-pão’. E não era com o ‘espirito de apostolado’ que os funcionários pagavam as suas despesas. . Um dia, alguém, embora reconhecendo a validade do seu trabalho, disse-lhe que a Obra não aparecia como sendo da Igreja. Conversámos e ficou claro que a Obra gozava de liberdade para trabalhar em qualquer bairro da cidade sem dependência da respetiva paróquia. Havia que harmonizar trabalhos que se completavam como duas faces da mesma Igreja, mas sem dependências nem clericalismos. . Nos finais de 1966, convidei-o para celebrar a ‘Missa de Passagem de Ano’ na capela do Cerco do Porto, há pouco inaugurada e disse-lhe: -Senhor Bispo, a minha missão é vicarial. Tem aqui o horário das missas dominicais. Quando puder, apareça. Ele aceitou o convite e o repto. Várias vezes aconteceu que, estando eu já paramentado, me vieram dizer: - Chegou o Senhor Bispo. E era tanta a sua simplicidade que as crianças lhe chamavam ‘Senhor Padre Bispo’. Com D. António Ferreira Gomes . Em 1970, em seu nome, fui convidar o Dr. Sá Carneiro para a direção da Obra. - ‘Não posso’, respondeu e explicou: - ‘Vou a apresentar na Assembleia Nacional um pedido de revisão da Concordata que permita o divórcio civil a pessoas casadas catolicamente. Isso vai levantar contra mim a hierarquia; não quero comprometer o nome de D. António’. Ao despedir-me, ficou assente que aceitaria o convite, se o Senhor Bispo, sabendo da sua intenção, insistisse no pedido Dirigi-me imediatamente à Casa Episcopal. D. António respondeu-me: - Diga ao Dr. Sá Carneiro que eu assumo a responsabilidade pelas consequências. E assim o Dr. Sá Carneiro fez parte da Direção da Obra desde 1971 até 1975. . No dia do funeral de Salazar, almocei, por coincidência, com D. António. No final do almoço, ao dirigirmo-nos para a sala de audiência, passámos numa sala onde uma televisão mostrava o caixão do ditador a ‘descer à cova’. D. António, surpreendido, parou; benzeu-se; estático, manteve-se em silêncio; pareceu-me balbuciar uma oração. No fim, benzeu-se e, em surdina, disse: “Este já não faz mais mal a ninguém. . Num momento de grande tensão entre a Obra e o Governo, D. António falava-me dos bispos do Porto que pugnaram pela liberdade da Igreja face ao poder político, com grande destaque para o seu guia, D. António Barroso. Quando lhe perguntei a razão para esta independência, em contraste como os de Lisboa, respondeu-me de modo muito simples. - É que nós não casamos as filhas dos Senhores Ministros nem lhes batizamos os netos… Em conclusão… Carismas diferentes, mas, fruto dum único Espírito, o mesmo amor à Igreja. (19/2/2025)