MEMÓRIAS FEITAS SAUDADE...
Falo dum amigo. E faço-o de olhos molhados porque
sei que ele, visitador assíduo desta coluna, já não a vai ler… Aquando da sua
morte, o jornal diocesano deu-lhe o merecido relevo. Muitos enalteceram as suas
qualidades como pessoa, cidadão, presbítero, professor, intelectual: “homem de
fé e de pensamento”. Destaco as palavras do diretor: ”A morte de Mons. Ângelo
Alves ressoará certamente na memória de muitos dos seus alunos ”. Sou um deles.
Fui seu aluno no Seminário da Sé. As agruras especulativas da Metafísica eram
suavizadas pela disponibilidade do professor que nos acompanhava em tão
elevados caminhos do pensamento. Senti-o, de modo especial, quando o então
reitor, Dr. Brandão, me convidou a escrever um texto para o suplemento “Letras
e Artes” do jornal Novidades em honra
de S. Tomás de Aquino. Amedrontado, logo me dirigi ao quarto do Dr. Ângelo que
me acalmou e se ofereceu para me apoiar. Escolhido o tema, eminentemente
filosófico, “ Mudanças Substanciais e
Hilemorfismo” (8/3/1959), emprestou-me vários livros que me ajudaram a
penetrar na sua complexidade. Mais que mestre, fez-se companheiro. Voltei a
pedir-lhe ajuda quando, já aluno da Universidade do Porto, quis apresentar um
trabalho sobre “o idealismo criacionista de Leonardo Coimbra”. O mesmo apoio e
o mesmo companheirismo.
No verão de 1961, organizámos uma colónia de férias,
em Albergaria da Serra, com crianças do bairro da Sé. O Dr. Ângelo
acompanhou-nos nos primeiros dias, depois foi o Dr. Armindo. Nesse tempo, a
aldeia, perdida na serra da Freita, não tinha acessos. A estrada parava junto
do radar. Foi partir daí, por carreiros íngremes e pedregosos, que tivemos de
transportar tudo o que era preciso para 27 pessoas: camas, roupas, panelas,
pratos, talheres, víveres… Enfim…tudo, porque apenas dispúnhamos da escola
primária com fogão para cozinhar e dum salão vazio para dormir. Tudo foi
transportado por nós, pelas crianças e pelos amigos que nos acompanhavam. O Dr.
Ângelo foi um deles. E com que simplicidade o fez. Parece que ainda o estou a
ver a acarretar panelas e colchões… Coisa difícil de imaginar numa pessoa tão
distinta e num intelectual do seu gabarito. Nessas andanças, um menino caiu e
fraturou um braço. Um carro que nos tinha levado trouxe-o para o hospital de
Arouca, acompanhado pelo Coelho que era da terra. Eu e o Dr. Ângelo lá ficámos
a velar por 19 meninos e 4 meninas, na primeira noite que passavam fora de
casa. Recordo o seu sorriso quando me viu ajoelhado junto duma cama a segurar a
mão do mais novito que precisava de sentir a presença da mãe para adormecer… E
tudo à luz do petromax…
Muito mais haveria para sublinhar a sua “grande
simplicidade e humildade”…
Tenho ou não razões para ter os olhos humedecidos,
caro leitor?
(22-3-2017)
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