O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, março 22, 2017


MEMÓRIAS FEITAS SAUDADE...


Falo dum amigo. E faço-o de olhos molhados porque sei que ele, visitador assíduo desta coluna, já não a vai ler… Aquando da sua morte, o jornal diocesano deu-lhe o merecido relevo. Muitos enalteceram as suas qualidades como pessoa, cidadão, presbítero, professor, intelectual: “homem de fé e de pensamento”. Destaco as palavras do diretor: ”A morte de Mons. Ângelo Alves ressoará certamente na memória de muitos dos seus alunos ”. Sou um deles. Fui seu aluno no Seminário da Sé. As agruras especulativas da Metafísica eram suavizadas pela disponibilidade do professor que nos acompanhava em tão elevados caminhos do pensamento. Senti-o, de modo especial, quando o então reitor, Dr. Brandão, me convidou a escrever um texto para o suplemento “Letras e Artes” do jornal Novidades em honra de S. Tomás de Aquino. Amedrontado, logo me dirigi ao quarto do Dr. Ângelo que me acalmou e se ofereceu para me apoiar. Escolhido o tema, eminentemente filosófico, “ Mudanças Substanciais e Hilemorfismo” (8/3/1959), emprestou-me vários livros que me ajudaram a penetrar na sua complexidade. Mais que mestre, fez-se companheiro. Voltei a pedir-lhe ajuda quando, já aluno da Universidade do Porto, quis apresentar um trabalho sobre “o idealismo criacionista de Leonardo Coimbra”. O mesmo apoio e o mesmo companheirismo.

No verão de 1961, organizámos uma colónia de férias, em Albergaria da Serra, com crianças do bairro da Sé. O Dr. Ângelo acompanhou-nos nos primeiros dias, depois foi o Dr. Armindo. Nesse tempo, a aldeia, perdida na serra da Freita, não tinha acessos. A estrada parava junto do radar. Foi partir daí, por carreiros íngremes e pedregosos, que tivemos de transportar tudo o que era preciso para 27 pessoas: camas, roupas, panelas, pratos, talheres, víveres… Enfim…tudo, porque apenas dispúnhamos da escola primária com fogão para cozinhar e dum salão vazio para dormir. Tudo foi transportado por nós, pelas crianças e pelos amigos que nos acompanhavam. O Dr. Ângelo foi um deles. E com que simplicidade o fez. Parece que ainda o estou a ver a acarretar panelas e colchões… Coisa difícil de imaginar numa pessoa tão distinta e num intelectual do seu gabarito. Nessas andanças, um menino caiu e fraturou um braço. Um carro que nos tinha levado trouxe-o para o hospital de Arouca, acompanhado pelo Coelho que era da terra. Eu e o Dr. Ângelo lá ficámos a velar por 19 meninos e 4 meninas, na primeira noite que passavam fora de casa. Recordo o seu sorriso quando me viu ajoelhado junto duma cama a segurar a mão do mais novito que precisava de sentir a presença da mãe para adormecer… E tudo à luz do petromax…

Muito mais haveria para sublinhar a sua “grande simplicidade e humildade”…

Tenho ou não razões para ter os olhos humedecidos, caro leitor?

(22-3-2017)