Justa homenagem
Entre os livros que me preenchem
as estantes, um ocupa lugar de eleição. É um dicionário de francês: à mão, tem
escrito 1904 Carlos
Moreira Coelho.
Trata-se duma oferta do “Senhor Abade”
que me batizou e acompanhou ao longo da infância e a quem ajudei muitas vezes à
missa. Quantas madrugadas! Como recordo… Depois de se benzer, de frente para o
altar e de costas para o povo, dizia: “Introibo ad Altare Dei”. E eu, menino,
de joelhos a seu lado: “Ad Deum qui laetificat iuventutem
meam”.
Natural de Parada de Todeia e conterrâneo de D. António Barbosa Leão, foi,
por muitos anos, pároco de S. Martinho de Campo, Valongo. Homem bom e sacerdote
amigo.
Lembro a minha primeira confissão. Ia eu cheio de medo porque os rapazes
mais velhos haviam dito que, ao confessar-me, ele metia-me a orelha por debaixo
da porta e a cada pecado que dissesse, o galo, que estava atrás da porta, dava-lhe
uma bicada… E que grande era o galo do Senhor Abade!... Quando me ajoelhei, disse-me
a sorrir: - Tu és Tanoeiro. Quando é que
me fazes uma pipa? Minha família herdou essa alcunha do meu bisavô que era tanoeiro.
Sempre que me ia confessar, começava:- Então,
a minha pipa já está pronta?
O dia em que o sentíamos mais próximo e feliz era na “Festa do Menino” no primeiro de janeiro -
a grande festa da terra- quando se leiloavam as “prendas do Menino”. No Natal,
os presentes eram para as crianças oferecer ao Menino Jesus na igreja “como fizeram
os Pastores e os Reis Magos”…
Na Páscoa, sempre me dava um bocado do “pão leve” que minha mãe punha na mesa e de que eu lambia o papel e
aproveitava alguma migalha, depois do compasso passar…
Quando fui com meu pai dizer-lhe que queria “estudar para padre”, logo perguntou:
- Porquê? Queres ter um burro como o meu? Ele sabia quanto as crianças admiravam
o cavalo que montava quando se deslocava pela aldeia. Ainda vinha longe e nós,
já de gorro na mão, pedíamos “sa benza, Senhor
Abade”.
Senti necessidade de evocar a sua memória quando, na sessão comemorativa
de S. Francisco de Sales, ouvi o P. José Adílio mencionar o seu nome entre os
presbíteros ordenados, em1913, na capela de S. Tiago – a “catedral de exílio” de
D. António Barroso. Num tempo de forte anticlericalismo, quando a igreja fora
espoliada de todos os bens, bispos eram perseguidos e muitos padres viviam na
miséria, espanta como tantos jovens tenham tido a coragem de abraçar o
sacerdócio. São dignos de louvor. A Voz Portucalense faria bem em publicar seus
nomes. Poderia ser que acordasse memórias que tardam em despertar. E talvez
muita gente ficasse grata a D. António Barroso ao saber, como eu, que, mesmo no
exílio, ordenou o “Senhor Abade” da sua meninice… Onde estão os outros nove? (Lc,17,17) A gratidão enobrece a alma…
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