O Tanoeiro da Ribeira

domingo, maio 18, 2014

Justa homenagem


 

Entre os livros que me preenchem as estantes, um ocupa lugar de eleição. É um dicionário de francês: à mão, tem escrito 1904  Carlos Moreira Coelho.

Trata-se duma oferta do “Senhor Abade” que me batizou e acompanhou ao longo da infância e a quem ajudei muitas vezes à missa. Quantas madrugadas! Como recordo… Depois de se benzer, de frente para o altar e de costas para o povo, dizia: “Introibo ad Altare Dei”. E eu, menino, de joelhos a seu lado: Ad Deum qui laetificat iuventutem meam”.

Natural de Parada de Todeia e conterrâneo de D. António Barbosa Leão, foi, por muitos anos, pároco de S. Martinho de Campo, Valongo. Homem bom e sacerdote amigo.

Lembro a minha primeira confissão. Ia eu cheio de medo porque os rapazes mais velhos haviam dito que, ao confessar-me, ele metia-me a orelha por debaixo da porta e a cada pecado que dissesse, o galo, que estava atrás da porta, dava-lhe uma bicada… E que grande era o galo do Senhor Abade!... Quando me ajoelhei, disse-me a sorrir: - Tu és Tanoeiro. Quando é que me fazes uma pipa? Minha família herdou essa alcunha do meu bisavô que era tanoeiro. Sempre que me ia confessar, começava:- Então, a minha pipa já está pronta?

O dia em que o sentíamos mais próximo e feliz era na “Festa do Menino” no primeiro de janeiro - a grande festa da terra- quando se leiloavam as “prendas do Menino”. No Natal, os presentes eram para as crianças oferecer ao Menino Jesus na igreja “como fizeram os Pastores e os Reis Magos”…

Na Páscoa, sempre me dava um bocado do “pão leve” que minha mãe punha na mesa e de que eu lambia o papel e aproveitava alguma migalha, depois do compasso passar…

Quando fui com meu pai dizer-lhe que queria “estudar para padre”, logo perguntou: - Porquê? Queres ter um burro como o meu? Ele sabia quanto as crianças admiravam o cavalo que montava quando se deslocava pela aldeia. Ainda vinha longe e nós, já de gorro na mão, pedíamos “sa benza, Senhor Abade”.

Senti necessidade de evocar a sua memória quando, na sessão comemorativa de S. Francisco de Sales, ouvi o P. José Adílio mencionar o seu nome entre os presbíteros ordenados, em1913, na capela de S. Tiago – a “catedral de exílio” de D. António Barroso. Num tempo de forte anticlericalismo, quando a igreja fora espoliada de todos os bens, bispos eram perseguidos e muitos padres viviam na miséria, espanta como tantos jovens tenham tido a coragem de abraçar o sacerdócio. São dignos de louvor. A Voz Portucalense faria bem em publicar seus nomes. Poderia ser que acordasse memórias que tardam em despertar. E talvez muita gente ficasse grata a D. António Barroso ao saber, como eu, que, mesmo no exílio, ordenou o “Senhor Abade” da sua meninice… Onde estão os outros nove? (Lc,17,17) A gratidão enobrece a alma…