O Tanoeiro da Ribeira

terça-feira, fevereiro 04, 2014

A emergência do homem simbólico- I



Estou a escrever no dia de S. Sebastião e recordo a festa em sua honra a que assisti em Couto de Ornelas no Barroso. Já lá vão uns anitos… Motivava-me um pensamento de Mircea Eliade:

 Assim como a natureza é o produto de uma secularização progressiva do Cosmos, obra de Deus, assim o homem moderno profano é o resultado de uma dessacralização da existência humana. O homem a-religioso, por oposição ao seu predecessor, o “homo religiosus”, esforça-se por se esvaziar de toda a religiosidade e de toda a significação trans-humana. Por outras palavras, o homem profano, queira ou não, conserva ainda vestígios do comportamento do homem religioso, mas esvaziado das significações religiosas. Faça o que fizer, é um herdeiro. ”

Começámos pela casa onde o mordomo guardava o pão e se cozia o arroz. Fomos recebidos como pessoas da família. Ao redor de uma grande fogueira, o arroz borbulhava, apetitoso, dentro de enormes panelas de ferro, de três pernas. Estava a ferver na água em que já antes se cozera a carne. Levaram-nos a ver a sala onde, religiosamente, se guardavam as 420 broas de pão que levaram três dias e duas noites a cozer.

Aquecidos pelo calor da fogueira e da amizade do acolhimento, saímos para o largo da aldeia.

Entretanto, o sino do campanário chamou mas poucos o atenderam. A missa em honra de S. Sebastião ia começar. Ainda esta decorria e já as pessoas se dispunham ao longo da mesa onde iria ser servido o alimento. Buscavam pão, não dentro da igreja, mas cá fora, ao ar livre. Que pão? Duas formas de significação se confrontavam. Como diz Leonardo Boff: tudo é sacramento ou pode tornar-se. Depende do homem e do seu olhar. Se ele olhar humanamente, relacionando-se, deixando que o mundo entre dentro dele e se torne o seu mundo, nesta medida o mundo revela a sua sacramentalidade. O mundo todo e não apenas uma parte dele será sua pátria amiga e familiar, onde mora a fraternidade e vive a tranquilidade da ordem de todas as coisas.

Terminada a missa, o sacerdote, em procissão com o santo, foi benzer a mesinha (pão, arroz e carne de porco) que será partilhada e levada para os animais domésticos. Foi o rito da bênção. Poucos o seguiram. Já toda a gente ladeava a estreita e comprida mesa feita de bancos de madeira que se estendia pelo caminho. Seriam mais de três mil pessoas. Foi um frente a frente, amigo e fraterno.

            De repente, a conversa fez-se murmúrio. Todos se afastaram da mesa e compuseram a postura. A cerimónia ia começar, seguindo a tradição. O eterno ontem faz-se presente. Há ritmo e gestos religiosamente cumpridos. Sem atropelos. É o rito a impor o como antigamente… E o mito reminiscente a dar-lhe sentido.

E depois? Para o saber…