A emergência do homem simbólico- I
Estou a escrever no dia
de S. Sebastião e recordo a festa em sua honra a que assisti em Couto de
Ornelas no Barroso. Já lá vão uns anitos… Motivava-me um pensamento de Mircea
Eliade:
“ Assim
como a natureza é o produto de uma secularização progressiva do Cosmos, obra de
Deus, assim o homem moderno profano é o resultado de uma dessacralização da
existência humana. O homem a-religioso, por oposição ao seu predecessor, o “homo
religiosus”, esforça-se por se esvaziar de toda a religiosidade e de toda a
significação trans-humana. Por outras palavras, o homem profano, queira ou não,
conserva ainda vestígios do comportamento do homem religioso, mas esvaziado das
significações religiosas. Faça o que fizer, é um herdeiro. ”
Começámos pela casa
onde o mordomo guardava o pão e se cozia o arroz. Fomos recebidos como pessoas
da família. Ao redor de uma grande fogueira, o arroz borbulhava, apetitoso,
dentro de enormes panelas de ferro, de três pernas. Estava a ferver na água em
que já antes se cozera a carne. Levaram-nos a ver a sala onde, religiosamente,
se guardavam as 420 broas de pão que levaram três dias e duas noites a cozer.
Aquecidos pelo calor da
fogueira e da amizade do acolhimento, saímos para o largo da aldeia.
Entretanto, o sino do
campanário chamou mas poucos o atenderam. A missa em honra de S. Sebastião ia
começar. Ainda esta decorria e já as pessoas se dispunham ao longo da mesa onde
iria ser servido o alimento. Buscavam pão, não dentro da igreja, mas cá fora,
ao ar livre. Que pão? Duas formas de significação se confrontavam. Como diz
Leonardo Boff: tudo é sacramento ou pode
tornar-se. Depende do homem e do seu olhar. Se ele olhar humanamente,
relacionando-se, deixando que o mundo entre dentro dele e se torne o seu mundo,
nesta medida o mundo revela a sua sacramentalidade. O mundo todo e não apenas
uma parte dele será sua pátria amiga e familiar, onde mora a fraternidade e
vive a tranquilidade da ordem de todas as coisas.
Terminada a missa, o
sacerdote, em procissão com o santo,
foi benzer a mesinha (pão, arroz e
carne de porco) que será partilhada e levada para os animais domésticos. Foi o
rito da bênção. Poucos o seguiram. Já toda a gente ladeava a estreita e
comprida mesa feita de bancos de madeira que se estendia pelo caminho. Seriam
mais de três mil pessoas. Foi um frente a frente, amigo e fraterno.
De repente, a conversa fez-se murmúrio. Todos se
afastaram da mesa e compuseram a postura. A cerimónia ia começar, seguindo a
tradição. O eterno ontem faz-se
presente. Há ritmo e gestos religiosamente cumpridos. Sem atropelos. É o rito a
impor o como antigamente… E o mito reminiscente
a dar-lhe sentido.
E depois? Para o saber…
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