O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, julho 16, 2025

FUNERAL DO PADRE AMÉRICO - UM DOCUMENTO INÉDITO

Faz, agora, 69 anos… E ainda há testemunhos desconhecidos que nos falam duma cidade em lágrimas…Gente que sabe ser grata e reconhecer quem a ama. Esta é a alma do Porto que nos identifica e urge preservar. “17. Julho.1956 – terça feira – O funeral do padre Américo saiu às 9,30 da igreja da Trindade; era um cortejo enorme; uma enorme multidão; Eu estive a ver passar na Câmara Nova; Para o lado do Edifício do Capitólio, ouviram-se gritos de dor, na despedida; lenços agitavam-se no ar; os soldados fizeram o cordão para suster a multidão, eram muitas dezenas de carros a acompanhar; carros do exército iam também bastantes com bastante oficialidade; não vi o bispo; notei poucos padres; ia o governador civil, pareceu-me que aborrecido; Não cheguei a deixar passar tudo; procurei incorporar-me, mas era tarde; só consegui juntar-me aos que o acompanhavam a pé, depois de ter passado o Matadouro Municipal, na Corujeira; Pelo caminho muitas mulheres choravam; viam-se lágrimas em quási todos os olhos; disseram-me ao atingir os acompanhantes a pé, que já no Campo 24 de Agosto, tinham tentado desfazer o cortejo para levar o funeral em velocidade; devem tentá-lo novamente na Ponte de Rio Tinto, disseram; Gente do povo, especialmente mulheres, iam em chusma, alguns dependurados no carro dos Bombeiros que levava o corpo, com a mão colocada na urna. Numa fábrica pouco antes de chegar ao Bairro do Ilhéu, um operário de certa idade, pôs-se à frente do carro dos Bombeiros, fazendo alto e pedindo para esperarem uns momentos para o pessoal da fábrica, que já vinha pela ruazita privada, pudesse despedir-se do bom padre Américo. Passados os breves momentos, o carro seguiu novamente e pouco adiante, percebi que ordens eram dadas aos motociclistas da polícia que precediam o carro dos Bombeiros. O povo julgava que queriam fugir com o morto, e procurava contrariar este propósito, caminhando de modo a atrancar o mais possível o caminho, para que os carros não pudessem ganhar velocidade; Um motociclista chegou a prender-me um sapato com a roda, amassando-me o calcanhar do sapato e quási me fazendo cair; segurei-me e caminhando sempre enquanto forçava o pé dentro do sapato a tomar o seu lugar, desamassando o calcanhar, virei-me para trás e disse: - O senhor não vê o que vem a fazer? O senhor que vem aí atrás é que tem que ver por onde vai e a velocidade que deve levar; Não tive resposta e tudo caminhou até pouco mais abaixo, onde estava a polícia de trânsito no meio da rua a mandar arrumarem-se todos, sendo, entretanto, pouco acatados; mas os motociclistas forçam também e nisto surge o carro do governador civil, vi eu, que passou à frente do carro dos Bombeiros que levava a urna, e aproximando-se dum motociclista, disse em tom de comando: - Aqueles carros da frente que comecem a andar depressa. Tudo se precipitou então; o povo, sentindo os carros aumentar a velocidade, afastou-se e os carros começaram todos a correr para não mais poderem ser atingidos. Esteve o cortejo largos minutos a passar; poucos táxis; muitos do povo, pedindo boleias, que não foram atendidos ou por recusa declarada ou por “vista grossa”. Isto é, a solidariedade humana, que o extinto tanto cultivou e propagandeou, era repudiada por muitos daqueles que lhe foram prestar a última homenagem talvez por vaidade ou por inconfessáveis interesses a colher das aparências. Uma mulher do povo, dizia-me no eléctrico em que regressei, que viera de Oliveira de Azeméis para assistir ao funeral; só soubera hoje de manhã quando ia para o mercado; guardou as suas coisas e meteu-se na caminheta; veio de abalada; seguiu o cortejo até à Ponte; irá depois a Paço de Sousa.” (Arnaldo de Sousa e Silva) Este texto, que me foi dado a conhecer por Adelaide Sousa, não é obra dum profissional, não faz parte duma reportagem jornalística, mas, sim, das notas que seu pai ia escrevendo na sua agenda pessoal. E quem foi o seu autor? A leitura do livro ‘Heróis Anónimos – Um Grande Homem em Tempos Pequenos’, publicado em 2021, confirmou-me o que a minha amiga me dizia e escreveu: “A sua vida foi sempre pautada pelo rigor e pela defesa dos seus ideais de cidadão. (pág. 15); “Foram muitos os envolvimentos de Arnaldo de Sousa e Silva nos assuntos da Comunidade. (…) Foi o caso da associação ‘O Amanhã da criança’ que contou com a sua ação motivadora “(pág. 120). Para que a memória não se perca…E há pessoas que não podem ser esquecidas… (16/7/2025)