O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, outubro 24, 2018

"BESTAS DE CARGA..."



Em 23 de março, foi inaugurada, na Fundação Manuel António da Mota, a exposição “Homenagem às Carquejeiras do Porto”.

Um expositor elucidava que “durante anos estas mulheres transportavam cerca de 50kg de carqueja às costas, subindo uma rampa com declive de 21º desde a sua chegada ao rio, até aos fornos das padarias e aquecia as casas burguesas". Para fazer memória deste “trabalho «quase escravo» que nunca foi dignificado," e lembrar estas heroínas silenciosas, pensa-se erguer um monumento ao cimo da antiga Calçada da Corticeira.

Ao iniciar a exposição o visitante sentia-se esmagado por fotografias de mulheres - «bestas de carga» -vergadas sob volumosos feixes de carqueja que as escondem quase por completo. Autênticas formigas onde o tamanho do carreto é bem maior que a sua transportadora. E o que mais surpreende é que, sob esse imenso feixe, nalgumas fotografias ainda se vislumbram olhos bonitos que sorriem.
Demorei-me frente ao quadro “Carqueja negra”.  Negra era a vida destas mulheres que mourejavam por uma côdea para os filhos. Negra era esta sociedade que bebia até ao tutano o sangue dos mais pobres…
Mas o quadro que mais me impressionou tinha o título “Sombras que se fundem”. Nele, uma mulher, dobrada sob um enorme feixe de carqueja por onde afloram vários rostos, com expressões de sofrimento, caminha com os pés em sangue que mancham de vermelho as pedras da calçada. Não é exagero artístico… É verdade nua e crua.

Confirma-o o relato escrito em 26 de maio de 1947 pelo jornalista Sousa Costa:

“O cais macabro fica lá em baixo, ao fundo da calçada da Corticeira. É lá, à borda do rio, que assentam no dorso das criaturas, cobrindo-as da cabeça aos pés as suas ásperas montanhas de carqueja. E é lá ao fundo que elas trepam à cidade alta, suando, gemendo, vergadas ao peso do fardo descomunal – de rastos quase, os joelhos quase a descarnarem-se nas lajes do calvário, a cabeça quase submersa nas dobras do ventre, o ventre repuxado no esforço do equilíbrio. E quantas vezes os mártires da vida madrasta sinalizam a sangue a trilha afrontosa, a violência da compressão muscular, cuspindo na Calçada os filhos das suas entranhas!” (“O Problema das Carquejeiras do Porto – PORTO - 1951”)

Já em 1935, o JN publicava dois números sob o título “Ouriços Humanos” de que transcrevo. “ A faina é dura – porque se repete, quatro cinco, seis vezes por dia. A necessidade obriga – e toda aquela gente precisa de comer, precisa de dar de comer aos seus.”

Não é romantismo, mas realidade pura e dura. E não aconteceu na Idade Média… Minha comadre Olga Celeste conviveu com muitas destas heroínas silenciosas. Ainda em 1951, a Liga Portuguesa de Profilaxia Social clamava contra “esse costume bárbaro de transformar seres humanos em bestas de carga”.
( 24/10/2018)