O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, janeiro 26, 2011

“Derramai, ó Céus, o vosso orvalho…”

Recordei este cântico de Advento, quando assistia a concertos de “O Ano do Órgão de Tubos na Cidade do Porto”.


Quando tantos se comprazem a amplificar as angústias do nosso quotidiano e a comunicação social explora até á exaustão os feitos mais degradantes da “besta humana”, o Festival de Órgãos, promovido pelo Secretariado Diocesano de Liturgia, derramou gotículas de refrigério e beleza sobre uma cidade onde a Igreja sempre foi espaço relevante de cultura.

Se S. Boaventura via na beleza das criaturas um caminho para Deus, que dizer da arte? Nela, o homem, mais que criatura, assume-se como com-criador. Se toda a arte é um apelo à transcendência, a música transporta-nos para o domínio da pura espiritualidade. Neste festival, atingiu-se as alturas do sublime. Ao ver como as mãos dos organistas bailavam sobre os teclados, invoquei um hino das Horas “E tu, ó Deus, prolongas em suas pequenas mãos as tuas mãos poderosas e os dois estais, de corpo inteiro, assim criando”. E nessas mãos com-criadoras, vi as mãos dos compositores, dos organeiros e dos operários que construíram o “Rei dos Instrumentos”, um “instrumento cósmico”, no dizer do Pe. Ferreira dos Santos. Na madeira, no estanho, no cobre dos tubos e na pele dos foles, ouvi a criação inteira a completar o cântico de Advento: “Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das Suas mãos”.
Os concertos foram pedacinhos de céu a lembrar-nos que Deus conta com o homem para humanizar a natureza e a humanidade.

À guisa de reflexão final, deixo três nótulas:

- O Porto foi, no passado, e voltou a ser, nos últimos tempos, a “cidade dos órgãos”. Que o digam, entre outros, os órgãos modernos da Sé Catedral e da Igreja da Lapa e os órgãos
históricos do Mosteiro de S. Bento da Vitória, da Igreja de S. Lourenço e do
Mosteiro de Moreira da Maia, este é um dos raros da autoria do célebre organeiro do norte da Alemanha, Arp Schnitger, e único existente em Portugal.
As gentes do Porto quiseram honrar este título que nos dignifica, aderindo com entusiasmo ao Festival que nos enriqueceu. Havia sorriso nas palavras do seu organizador. A semente está lançada. Fica o apelo: continuemos a aproveitar o que temos de bom na cidade. Dos muitos concertos projectados, destaco: “Sons e Timbres do Órgão Ibérico”, “Ciclo de Órgão e Música Sacra do Porto 2011” e os concertos de órgão “non stop”, em 16 de Outubro, nas bodas de prata do Órgão da Sé Catedral. Estejam atentos à Voz Portucalense que sempre os anuncia.



- A fé cristã não se reduz à intimidade subjectiva do crente, nem a Igreja se confina ao serviço religioso dos seus templos, como querem alguns políticos e muitos “fazedores de opinião” da nossa praça. Os cristãos, neste como noutros campos, estão na linha da frente do esforço colectivo por uma sociedade mais justa, mais fraterna, mais bela, enfim, mais humana.

- O Porto está de parabéns. A cidade, onde tantas vezes a cultura sofre tratos de polé, foi colocada no mapa cultural da Europa e nos caminhos construtores da identidade europeia. E esse privilégio deve-o ao dinamismo e prestígio internacional do Cónego Ferreira dos Santos, da Igreja da Lapa, a “alma-mater” deste Festival. Honra lhe seja feita! Para ele, um “bem-haja”.