AS TRAVESSURAS DOS BUGIOS
Nasci em Campo e cresci a ouvir falar do «São João
de Sobrado».
A tradição dos povos do “Vallis Longus” fala dos
«Moiros» que extraíam ouro nos «fojos» da serra de Santa Justa (Cuca -Macuca).
Ainda na minha meninice, se explorava ouro num lugar que, por sinal, se chama
Moirama. Uma quadra popular canta: “Ó serra da Cuca - Macuca/ Tanta pena nos
deixais./ Atirais com ouro às cabras/ E não sabeis com qu’atirais”. Assim se
lamentavam os Mouros quando, perseguidos pelos cristãos, tiveram de abandonar
essas serras auríferas povoadas de pastores que ignoravam a sua riqueza.
A festa de S. João de Sobrado tem por base uma lenda
que evoca esses tempos de convivência e conflito entre cristãos e mouros. Conta
que a filha do Rei
Mouro (Reimoeiro) ficou gravemente doente. O pai chamou todos
os seus físicos e curandeiros. Mas a jovem não melhorava. Ao saber que, no
vale, os cristãos (Bugios) tinham uma imagem milagrosa de S. João que já curara
a filha do seu chefe (O Velho), manda-a pedir. Os bugios emprestam-lha e a
menina foi curada. O Reimoeiro, felicíssimo, organiza com os mouros
(Mourisqueiros) grandes festas em honra de S. João, mas recusa-se a devolver a
imagem aos cristãos. A convivência é rompida. Ouvem-se tiros. Inicia-se a
guerra entre bugios e mourisqueiros. Trocam-se mensagens. Os homens das leis
debatem a situação. Mas nada se resolve. Cansado de tanta espera, o Reimoeiro
ataca o castelo (palanque) dos bugios e prende O Velho. Quando tudo já parecia
perdido para os bugios, com o seu chefe preso, surge, do meio da multidão, uma
«serpe» gigantesca que assusta e afugenta o Reimoeiro e seus combatentes. Volta
a paz. E, no fim, tudo se harmoniza num ritual de danças.
Esta gesta é celebrada num teatro de rua (A bugiada) que mistura o
religioso e o profano, o sério e o burlesco, a ordem e a anarquia. Os
mourisqueiros representam o rigor e a ordem, claramente presente na sua
postura, a lembrar as festas gregas em honra de Apolo, o deus da razão e da
ordem.“Usam um fato colorido e listado, na cabeça levam uma barretina cilíndrica,
ladeada de espelhos e encimada de plumas, usam polainas e, na mão
direita, transportam uma espada”. Já os bugios simbolizam o espontâneo e o
anárquico e lembram as festas a Dionísio, o deus da loucura e do caos. Vão
“mascarados, vestidos de roupas garridas, levam penachos de fitas na cabeça,
guizos por todo o corpo e castanholas nas mãos”. Com muita algazarra, correrias
e outras travessuras à mistura. Esta anarquia é reforçada pela “sementeira do
milho” em que os lavradores começam por semear, depois gradar e só no fim é que
lavram. Uma catarse gerada pela transgressão das regras e pela inversão da
normalidade.
É uma festa muito antiga, de sabor histórico, com grande valor etnográfico
e profundo significado antropológico. (18/6/2019)
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