O Tanoeiro da Ribeira

terça-feira, junho 18, 2019

AS TRAVESSURAS DOS BUGIOS



Nasci em Campo e cresci a ouvir falar do «São João de Sobrado».
A tradição dos povos do “Vallis Longus” fala dos «Moiros» que extraíam ouro nos «fojos» da serra de Santa Justa (Cuca -Macuca). Ainda na minha meninice, se explorava ouro num lugar que, por sinal, se chama Moirama. Uma quadra popular canta: “Ó serra da Cuca - Macuca/ Tanta pena nos deixais./ Atirais com ouro às cabras/ E não sabeis com qu’atirais”. Assim se lamentavam os Mouros quando, perseguidos pelos cristãos, tiveram de abandonar essas serras auríferas povoadas de pastores que ignoravam a sua riqueza.
A festa de S. João de Sobrado tem por base uma lenda que evoca esses tempos de convivência e conflito entre cristãos e mouros. Conta que a filha do Rei Mouro (Reimoeiro) ficou gravemente doente. O pai chamou todos os seus físicos e curandeiros. Mas a jovem não melhorava. Ao saber que, no vale, os cristãos (Bugios) tinham uma imagem milagrosa de S. João que já curara a filha do seu chefe (O Velho), manda-a pedir. Os bugios emprestam-lha e a menina foi curada. O Reimoeiro, felicíssimo, organiza com os mouros (Mourisqueiros) grandes festas em honra de S. João, mas recusa-se a devolver a imagem aos cristãos. A convivência é rompida. Ouvem-se tiros. Inicia-se a guerra entre bugios e mourisqueiros. Trocam-se mensagens. Os homens das leis debatem a situação. Mas nada se resolve. Cansado de tanta espera, o Reimoeiro ataca o castelo (palanque) dos bugios e prende O Velho. Quando tudo já parecia perdido para os bugios, com o seu chefe preso, surge, do meio da multidão, uma «serpe» gigantesca que assusta e afugenta o Reimoeiro e seus combatentes. Volta a paz. E, no fim, tudo se harmoniza num ritual de danças.
Esta gesta é celebrada num teatro de rua (A bugiada) que mistura o religioso e o profano, o sério e o burlesco, a ordem e a anarquia. Os mourisqueiros representam o rigor e a ordem, claramente presente na sua postura, a lembrar as festas gregas em honra de Apolo, o deus da razão e da ordem.“Usam um fato colorido e listado, na cabeça levam uma barretina cilíndrica, ladeada de espelhos e encimada de plumas, usam polainas e, na mão direita, transportam uma espada”. Já os bugios simbolizam o espontâneo e o anárquico e lembram as festas a Dionísio, o deus da loucura e do caos. Vão “mascarados, vestidos de roupas garridas, levam penachos de fitas na cabeça, guizos por todo o corpo e castanholas nas mãos”. Com muita algazarra, correrias e outras travessuras à mistura. Esta anarquia é reforçada pela “sementeira do milho” em que os lavradores começam por semear, depois gradar e só no fim é que lavram. Uma catarse gerada pela transgressão das regras e pela inversão da normalidade.
É uma festa muito antiga, de sabor histórico, com grande valor etnográfico e profundo significado antropológico. (18/6/2019)