O Tanoeiro da Ribeira

quarta-feira, dezembro 20, 2023

'GENTIL CAMPONESA'

“Tu és pura e imaculada/ Cheia de graça e beleza;/ Tu és a flor minha amada,/ És a gentil camponesa.” (António Aleixo) Lembrei-me do celebrado poeta popular algarvio, ao ler o poema ‘Sou Filha do Sol’ do livro ‘O Postigo do meu Mundo’: “Sou filha do sol/ E da madrugada,/ Neta da terra,/ E irmã da geada. Sou prima do vento e da lua,/ Do rigor do tempo,/ Ando descalça na rua.” A sua autora, Rosária Lança, natural do Torrão, Alcácer do Sal, trabalhadora agrícola, cedo conheceu a dureza dos campos alentejanos que bem retrata no poema ‘Ceifeira’: “Ceifeira de foice em punho/ Ao romper a madrugada,/ Cantando uma canção,/ Para alimentar a ilusão. (…) Com suor no rosto a escorrer,/ Espigas no peito a bater,/ Com amor no coração/ Mas a sofrer. Ceifa o pão que a sustenta/ E que a muitos dá de comer,/ Ceifa, ceifa, linda ceifeira/ Ceifeira linda mulher.” Por causa da faina agrícola, em criança, fez apenas a 3ª classe, mas “sempre gostou de escrever e, inspirada pelos campos onde trabalhava e por toda a envolvência da sua terra, ia compondo os seus poemas.” E é esta menina-mulher poeta que, no silêncio dos campos, de foicinha na mão e queimada pelo sol do Alentejo: • Canta os tempos da mocidade: “Por ti plantada,/ Por ti colhida, menina do Campo / Com a saia erguida/ Que aparas a fruta/ Da árvore colhida. Desces ao vale / E sobes ao monte,/ Sabes bailar/ E bebes na fonte. (…) De passo em passo/ Espalhas formusura/ Carregas no regaço/ A fruta madura.” (Camponesa) • Reza as orações da meninice: “A cruz da vida/ Que vou carregando,/ De madeira polida/ Como luz brilhando./ Um rosário de pedras/ Que vou pisando,/ Quantos pai- nossos/ Eu vou rezando./ Eu vou rezando,/ As Avé-Marias/ Rezo a cantar/ Pedindo à Virgem/ Para me salvar./ À Salvé-Rainha,/ Eu rezo de pé,/ Gemendo e chorando/ Na minha fé”. (Oração) • Louva o Criador: “Com um sopro de Deus,/ O universo se transformou,/ E logo nos campos seus/ A Primavera chegou. Chega a Primavera/ Começa um novo dia,/ Cobre-se de cores a terra,/ Cantam aves em sintonia.” (Primavera) • Ama a sua terra: “És terra pequenina/ Travessa e ladina/ Tens o rio a teus pés. Os teus filhos te amam,/ Em alta voz te chamam,/ Falando em bom português. És Torrão com tradição,/ O rio te dá a mão…” (Terra Pequenina) • Cultiva a gratidão “Vai-se embora o Sr. Prior,/ Deixa muitas saudades,/ Desejamos-lhe felicidades. Veio fazer a despedida/ É Homem de muita coragem,/ Sai de cabeça erguida.” (Versos dedicados ao Senhor Padre Bento) • E sonha… “Se eu não fosse humana/ Gostaria de ser uma ave/ Ser livre. Voar para terras distantes/ Rasgar horizontes,/ Beber em rios/ Riachos e fontes./ Sobrevoar o mar / Pairar, esvoaçar,/ Pousar em todos os pontos. Pousar no barco do Pescador/ Voar rasteiro como a andorinha,/ Serena como ave de rapina,/ Voar alto como o condor.” (Liberdade) A terminar, com votos de um Santo Natal e um Ano Bom para todos vós, caros leitores, partilho convosco o seu humor no poema “Nascimento de Jesus” “Se Jesus nascesse hoje,/ No meio desta evolução/ O seu próprio nascimento/ Sofreria alteração. Talvez na maternidade/ No meio de lençóis de linho/ Com ar condicionado/ A aquecê-lo devagarinho. E quando a Virgem Maria,/ Quisesse avisar José,/ Aí, ela precisaria/ De usar um télélé. Apressada carregaria/ Na tecla que acende a luz, / E depressa ela diria:/ - José, já nasceu Jesus! Os Pastores, ao saberem,/ Se fariam ao caminho,/ Guiados pelo GPS,/ Que os levaria ao menino. Os Reis Magos, então,/ Pensariam pelos cotovelos/ E resolveriam trocar,/ Um avião pelos camelos. A manjedoura, a vaquinha e o burrinho,/ Ficariam fora dos planos,/ Tal como, as Palhinhas e a Estrela,/ Usadas há dois mil anos.” Uma palavra de agradecimento à gentil camponesa que nos legou este rosário de pérolas, raras, da poesia popular feminina de que, com vénia, me faço eco; e ao Davide Sturla, o meu amigo italiano apaixonado por Torrão, que teve a amabilidade de mo oferecer. (20/12/2023)